Brasil
‘País tem que sair na frente em termos de ação, não só de discurso’, diz pesquisador do Inpa sobre a COP30
Philip Fearnside assinou editorial da revista Science criticando exploração de petróleo na Margem Equatorial e projetos de infraestrutura na Amazônia

O editorial desta semana da revista Science, a principal vitrine de opinião da ciência mundial, critica o governo brasileiro e diz que o país não está conseguindo “liderar pelo exemplo” na área ambiental. Coautor do texto, o cientista Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa),em Manaus (AM), questiona a intenção brasileira de expandir a produção de petróleo e a falta de medidas concretas para o país cumprir o compromisso de zerar a destruição de florestas.
Em entrevista ao jornal O Globo, o biólogo americano alerta que o objetivo do Acordo de Paris — manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C — não comporta a abertura de novas frentes de exploração fóssil, como na Margem Equatorial. Fearnside diz que mesmo o sucesso recente do governo em conter o desmatamento está ameaçado por projetos como a BR-319, que liga Manaus a Porto Velho. O cientista afirma que a COP30, que será realizada em novembro em Belém, pode marcar o momento em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva perderá o apoio que conquistou da comunidade acadêmica quando foi eleito em 2022.
O Brasil está tentando colocar a floresta no foco de sua ação na COP30, porque tem bons resultados para mostrar, como a redução do desmatamento. O senhor critica, porém, os grandes projetos de infraestrutura na Amazônia. Eles podem comprometer a política de clima do país?
Eles levarão à emissão de gases de efeito estufa por décadas no futuro. Hoje está se abrindo uma fronteira para a parte Oeste do Amazonas, e isso também está relacionado ao petróleo. Tem um grande projeto para a área sedimentar do Solimões, que seria acessada a partir da BR-319, uma obra que leva ao desmatamento e aos incêndios florestais. Além disso, a estrada traz exploração de madeira e degradação da floresta. Isso tudo emite gases efeito estufa, e aquela área tem um enorme estoque de carbono. É a parte da floresta mais crítica para a reciclagem de água no clima do Brasil, inclusive para abastecer a própria cidade de São Paulo. A situação de clima no centro-sul do Brasil já mudou. Temos grandes secas, como as de 2014 e 2021. Por causa de mudanças nas temperaturas dos oceanos, existe até previsão de que isso piore no futuro. Isso aumenta muito o valor de manter aquela área da Floresta Amazônica preservada, porque é o último lugar em que é reciclada a água antes de ser levada a São Paulo, pelo rios voadores.
No editorial da Science, o senhor também criticou a política fundiária do país. A situação da grilagem não está mais controlada agora?
Uma das coisas que o governo está fazendo é legalizar as reivindicações de ocupações nas terras públicas não destinadas, que são um dos grandes motores de desmatamento. Pelo menos metade do desmatamento recente tem sido nessas terras, e legalizar isso estimula mais invasão, mais grilagem. O Ministério da Agricultura está financiando e estimulando expansão de soja e gado não só na Amazônia, mas no Cerrado. A transformação de pastagem em soja, inclusive no Cerrado, é um estímulo ao desmatamento na Amazônia. Os pecuaristas vendem a terra a um preço valorizado, compram grandes áreas de floresta baratas na Amazônia e desmatam a nova fazenda. Muito das áreas perto da BR-163, que corta o Mato Grosso e o Pará, em São Félix do Xingu, têm esses grandes focos de desmatamento por pecuaristas que venderam as terras para plantadores de soja e se mudaram para lá.
Mas o trabalho de monitoramento e fiscalização não vai conter o desmatamento em torno dos novos empreendimentos? O governo, afinal, assumiu o compromisso de zerar o desmate até 2030.
Como o governo vai cumprir essa promessa? Ele precisa ter um plano para diminuir ainda mais o desmatamento. Hoje, só o Ministério do Meio Ambiente tenta controlar a situação. Os outros ministérios entregam o problema para ele. Quando fizerem a BR-319, o Ibama vai ter que se virar para controlar o desmatamento ali. Você tem que pensar no que vai acontecer antes de colocar esse processo em movimento. O Ibama não tem autoridade para mudar a política sobre financiamento e sobre legalização de terras. Além disso, o Congresso Nacional tirou do Ministério do Meio Ambiente o controle sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o colocou nas mãos dos ruralistas. Essas reivindicações on-line no CAR levam à legalização de áreas desmatadas, e fica um fato consumado, para depois legalizarem ocupações ilegais.
O maior ponto de conflito do governo na COP30 é a iniciativa de exploração de petróleo na Margem Equatorial. O governo tem razão quando argumenta que o Brasil tem direito a explorar petróleo por mais tempo que os países industrializados? A lógica desse argumento é que nações pobres não usaram tanto combustível fóssil para se desenvolver no passado, como Europa e Estados Unidos.
Não podemos tomar os EUA como modelo e como padrão, especialmente com (o presidente americano Donald) Trump ali. Vamos destruir o clima porque os EUA estão destruindo também? Isso é uma fórmula para desastre, e o Brasil seria uma das grandes vítimas. Para conseguir liderar, um país tem que sair na frente em termos de ação, não só de discurso.
Esse argumento de responsabilidade histórica tem sido usado para contestar o relatório da Agência Internacional de Energia (IEA), que o senhor cita no editorial. Ele não é válido?
A IEA reúne 123 países e não é um grupo ambientalista. É uma organização que geralmente está do outro lado da discussão nos assuntos ambientais. Soltaram esse relatório dizendo que não se deve abrir nenhum novo campo de petróleo e gás no mundo. Se os campos atuais continuarem produzindo até se esgotarem, o petróleo produzido neles já compromete o clima global. E a IEA reconhece que as emissões têm que parar muito cedo. No caso do petróleo na Foz do Amazonas (que fica na região da Margem Equatorial), a previsão é de cinco anos para começar a produzir em escala comercial, depois mais cinco anos para pagar o investimento. E depois disso, claro, ninguém vai parar de produzir, ainda com zero de lucro. Isso vai consumir muito do pouco tempo que o mundo tem para parar de usar combustível fóssil.
A mudança climática global, de todo modo, não está em questão na análise do Ibama sobre a Margem Equatorial, que leva em conta só os impactos ambientais mais próximos. O potencial de impacto regional não é menos preocupante do que o global?
No caso da Foz do Amazonas, pode ocorrer uma enorme catástrofe se tiver algum vazamento de petróleo, por causa da profundidade da água e das correntes marinhas. Já temos o exemplo do que aconteceu em 2010 com a Deepwater Horizon no Golfo do México. Vazou petróleo por cinco meses sem controle. Aquela catástrofe mostrou que ninguém no mundo tinha a tecnologia para tapar um vazamento daqueles, a 1,5 km de profundidade. O primeiro poço na Foz do Amazonas vai ficar a 2,8 km de profundidade, quase o dobro, e as correntes marinhas são bem mais complexas. A Petrobras argumenta, claro, que são muito experientes, mas ninguém ali fez isso ainda. Não existe nenhum vazamento dessa profundidade e desse tipo que tenha sido tapado em lugar nenhum no mundo.
Mesmo com todas essas críticas, o senhor foi escolhido ao lado de Walter Leal Filho para representar o posicionamento da Science sobre a atuação do Brasil na COP30, e a revista é a maior vitrine da ciência global. É sinal de que o presidente Lula está perdendo a confiança da comunidade científica?
Sem dúvida. Mesmo antes de assumir, Lula deu uma palestra na COP do Egito (em 2022) e todo mundo ficou encantado quando falou em zerar o desmatamento. Mas em setembro, se declarou a favor do BR-319. Ele não podia ter escolhido uma data mais irônica, quando o país estava coberto de fumaça das queimadas e estava com níveis recordes de seca na Amazônia, com os rios quase secando. E aí veio o apoio a explorar a Foz do Amazonas. Ele não está escutando a ciência e está cercado de pessoas que o colocam dentro de um espaço de desinformação. Esse é termo que o (presidente da Ucrânia, Volodymyr) Zelenski usou para falar do diálogo do Trump com o (presidente da Rússia, Vladimir) Putin sobre a guerra. É o que está acontecendo aqui. O presidente está cercado do ministro de Minas e Energia, da presidência de Petrobras, do ministro dos Transportes etc., que passam o panorama deles. Ele só tem a (ministra do Meio Ambiente) Marina Silva, provavelmente, como uma fonte de informações confiáveis na área.
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