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Brasil

“Narcodesmatamento”: na Amazônia existe um “ecossistema do crime”, diz cientista política Ilona Szabó

Ilona Szabó é presidente do Instituto Igarapé, organização que busca soluções em segurança pública, climática e digital.

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Para conseguir trazer investimento em economias compatíveis com a floresta em pé na Amazônia é preciso anular os riscos do território e não apenas prever as ameaças para as finanças. ”Os territórios da Amazônia têm uma complexidade que empreendedores e investidores não conhecem”, diz a cientista política Ilona Szabó, presidente do Instituto Igarapé, organização que busca soluções em segurança pública, climática e digital, ao jornal Valor Econômico.

Na Amazônia existe um “ecossistema do crime”, diz ela. A intersecção de crimes ambientais com tráfico de drogas, fraudes, corrupção, grilagem e lavagem de ativos pressiona a floresta e produz o que ela denomina “narcodesmatamento”.

narcodesmatamento-na-amazonia-Há mais de 900 rotas do tráfico mapeadas no Brasil (veja infográfico ao lado) seguindo para o exterior e atravessando outros países amazônicos. Nos últimos quatro anos ocorreu uma escalada do crime organizado na Amazônia, motivado pela alta de produção de cocaína em países vizinhos e falta de ação de comando e controle no Brasil.

Ilona Szabó tem se debruçado no desafio de transformar o ecossistema de economias ilícitas da região em ecossistemas de empreendimentos verdes. “Só vamos conseguir virar a página quando tivermos alternativas econômicas para as pessoas que trabalham na base dessas economias ilegais. Opções que sejam compatíveis com a floresta de pé”, diz.

“Quanto mais uma região é vulnerável e permeável à ilegalidade, com pessoas que trabalham por subsistência — porque quem corta a árvore não é quem fica com o dinheiro — maior a fragilidade em segurança e vai se atrair cada vez menos investimento”, segue. “É preciso cortar este ciclo negativo”.

“Falamos muito em soberania, mas o grande descaso que temos com esse incrível bioma faz com que estejamos perdendo o território para o crime”, avalia. A seguir os principais pontos da entrevista concedida ao Valor:

Ecossistema do crime

Nos oito países da bacia amazônica, o desmatamento ilegal, a mineração e a grilagem de terras se cruzam com a fraude, a lavagem de capitais, o tráfico de drogas e crimes violentos. O ecossistema do crime na Amazônia se ergue na convergência de crimes ambientais com crimes não ambientais e produz danos sociais profundos.

Narcodesmatamento

O gado criado em uma terra ilegal é um ativo que está sendo lavado. Narcotraficantes que estão na rota da Amazônia grilam terras e compram gado para esquentar o dinheiro. Como? Tem gente que vai comprar esse gado e essa é a entrada para a economia formal. É o que chamamos de narcodesmatamento. O que vemos na região são economias ilícitas e crimes ambientais se entrelaçando.

Grupos locais e máfias globais

Esse cenário se acentuou muito nos últimos quatro anos, infelizmente, porque existe uma escalada do crime organizado. Aconteceu nos nossos vizinhos também. Tivemos uma política ambiental no Brasil que parou de ir atrás das economias ilícitas e dos crimes ambientais, quando vivemos um pico terrível de desmatamento ilegal, e neste mesmo momento houve um pico de produção de cocaína nos nossos vizinhos.

Atores internacionais chegaram mais fortes em territórios onde já existiam grupos locais e máfias operando, com um aumento da colaboração do crime e a ampliação do narcodesmatamento.

Dinâmica

Há associações locais que irão fazer a fraude, dizer qual a terra que será grilada, por exemplo, e que irão se conectando com o crime organizado nacional. E máfias e cartéis de droga operando. No território, esses crimes ora acontecem ora colaboram. O crime colabora mais entre si do que as instituições de segurança pública.

Comando e controle não bastam

Hoje vemos um movimento muito intenso do governo federal de voltar a ter como prioridade a redução do desmatamento. Mas embora o comando e controle seja absolutamente essencial, não basta. Só vamos conseguir virar a página quando tivermos alternativas econômicas para as pessoas que trabalham na base dessas economias ilícitas. Opções que sejam compatíveis com a floresta de pé.

Rotas

As rotas do tráfico mudam todos os dias e se ajustam conforme a oportunidade. São mais de 900 rotas no Brasil. É algo intrincado na nossa Amazônia e nos países produtores. Há vários hubs na região, como Manaus, Belém, Boa Vista. Mas essas rotas mudam, algumas são mais consolidadas. O espaço aéreo está mais controlado, mas para sufocar essa dinâmica tem que haver um patrulhamento muito maior nos rios. A corrupção permeia todos esses mercados ilegais e o narcodesmatamento.

Riscos à soberania

Mapeamos as organizações no território, onde estão, que grupos criminosos são. Falamos muito em soberania, que a Amazônia é brasileira, mas o grande descaso que temos com esse incrível bioma faz com que estejamos perdendo o território para o crime. Corremos muito menos ameaça de invasão por qualquer país do que o risco real, que já acontece, de termos áreas controladas por organizações criminosas. Contra isso precisamos de inteligência, monitoramento, cooperação entre diferentes instituições dentro e fora do Brasil assim como olhar para soluções que tragam outras fontes de renda compatíveis com a economia da floresta em pé.

Feminicídio

Toda essa criminalidade se reflete em violência no território. Só em 2022 foram mais de 9.000 mortes violentas na Amazônia Legal, uma diferença de 45% com a taxa nacional. É uma região onde o crime violento cresce no Brasil. E cresce o feminicídio: a violência contra mulheres é evidente com as defensoras da floresta, as indígenas, as ribeirinhas, as quilombolas. São elas que estão na linha de frente e resistem à exploração predatória feita por atores de dentro e fora de suas comunidades. O número de defensores ambientais assassinados de 2014 a 2022 chegou a 296.

Virar a chave

A região tem essa criminalidade porque é muito vulnerável. Registra os piores indicadores socioeconômicos e de desenvolvimento humano do país. É óbvio que é preciso aumentar a resiliência e o desenvolvimento regional para enfrentar tudo isso. O Produto Interno Bruto da Amazônia Legal é só 8% do PIB brasileiro. Há todos os problemas ligados a conflitos de terra. Temos que virar essa chave.

Ciclo negativo

Quanto mais uma região é vulnerável e permeável a essas economias ilícitas, com pessoas que trabalham por subsistência — porque quem corta a árvore não é quem fica com o dinheiro — maior a fragilidade em segurança e vai se atrair cada vez menos investimento. É preciso cortar este ciclo negativo.

Reduzir riscos no território

Para conseguir trazer investimento em economias de fato compatíveis com a floresta em pé é preciso anular os riscos do território, não apenas fazer um “de-risking” de finanças. Os territórios da Amazônia têm uma complexidade que empreendedores e investidores não conhecem. Há questões graves de regulação fundiária, legislação, segurança pública, segurança jurídica. De repente muda o Marco Temporal, os mercados não estão regulados, os incentivos existem para a economia velha e não estão presentes para a nova. Não existem métricas de referência de ESG ligadas ao território e à operação das empresas. Em geral quem vem para a Amazônia também não imagina o quanto vai depender de serviços públicos de segurança, assistência jurídica ou zoneamento.

Riscos reputacionais

Só se irá conseguir atrair capital responsável e paciente, e empreendedores que tenham alta integridade ambiental como propósito, se tivermos modelos financeiros que ajudem na criação desses mercados, territórios que possam ter esses riscos minimizados e novas regulações. Não adianta anular apenas os riscos financeiros. Para essas novas economias, o modelo de finanças híbridas deve ser ativado. Precisa mexer nos modelos financeiros e agregar a mitigação de riscos territoriais. Ou os riscos reputacionais podem ser gigantes.

Alta integridade ambiental

Para uma floresta tropical ter alta integridade tem que ter biodiversidade. Não adianta restaurar a Amazônia com eucalipto, precisamos da biodiversidade nativa. Isso requer ciência, é caro, há perdas. Mas é a única maneira de se garantir os serviços ecossistêmicos, aumentando a resiliência de uma floresta que está sendo desmatada e degradada e daqui a pouco deixará de reter carbono e pode começar a emitir. Para evitar isso é preciso fazer uma restauração ecológica.

Bioeconomia não é monocultura

Não há ainda modelos financeiros compatíveis porque as pessoas estão pensando em mercado de carbono e em bioeconomia com a mesma cabeça de risco-retorno de economias tradicionais. Mas esses mercados não foram ainda criados, então é preciso ter um risco. Mais de 50% do PIB global depende de serviços ecossistêmicos. Se não houver um esforço de mercados investidores de criar modelos compatíveis com a natureza, o PIB global não para de pé. É um mercado que a gente não conhece ainda em seu potencial. Não se quer que a bioeconomia vire uma monocultura, tem que haver limites de produção de cada cadeia.

Capital paciente

O capital importante de ser atraído é o capital paciente. Porque se investe hoje em créditos de carbono e o empreendedor precisará receber um recurso adiantado porque o crédito só será gerado em 8 ou 12 anos.

Ouro verde

O nosso ouro é a biodiversidade. O Brasil pode ser potência verde nos mercados de alta integridade de carbono, no mercado futuro de créditos de biodiversidade, na bioeconomia, na biotecnologia e no turismo sustentável. Outro mercado crucial é o da transição energética — o Brasil tem matriz energética limpa e minerais críticos para transição. Mas a mineração de minerais críticos não pode ser incompatível com a proteção da biodiversidade. Uma coisa não pode sabotar a outra.

Segurança alimentar

O país que garante a segurança alimentar brasileira e do mundo precisa transitar para um modelo de agricultura de baixo carbono. Temos que oferecer segurança alimentar, energética e climática. Se abrirmos mão da climática, as outras não servem para nada.

O terceiro pilar dessa agenda de ação é criar novas regulações que permitam mercados responsáveis, mas com escala.

O futuro

Eu diria que o futuro está na biodiversidade. Mais no crédito de biodiversidade do que no de carbono. Veja o tamanho do espaço de oportunidade que temos em créditos de restauração com projetos atuais como o Arco da Restauração, lançado pelo BNDES ou o compromisso da nossa NDC (a meta climática) de restaurar 12 milhões de hectares no país.

O que a gente menos conhece e é potencialmente mais rentável é a economia da biodiversidade. Temos que preservar o serviço que a floresta tropical traz para todas as outras economias — o controle da temperatura, as chuvas, o fluxo de água que permite à nossa produção agrícola ser tão fértil, a energia. É um dever transformar o que hoje são economias ilícitas e informais na Amazônia em economias compatíveis com a floresta.