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Brasil

Entenda o decreto de 13.12.68 que deu início ao período mais violento da ditadura no Brasil

Durante seus dez anos de vigência, o documento fundamentou a cassação de 110 deputados federais e sete senadores, 161 deputados estaduais, 22 prefeitos e 22 vereadores.

O marechal Arthur da Costa e Silva, presidente que editou o AI-5. (Foto:Reprodução)

Imagine como seria se ninguém no Brasil pudesse criticar o governo. Se ninguém pudesse organizar ou participar de manifestações sem autorização policial. Um país onde políticos, juristas, professores e pensadores críticos do presidente fossem banidos. Onde as pessoas presas por questões políticas não tivessem direito a habeas corpus. Onde o trabalho de procuradores para investigar a corrupção estivesse cerceado. Onde a imprensa e a classe artística fossem obrigadas a submeter sua produção a um órgão censor. E onde, por essa razão, a população jamais seria informada sobre esquemas de corrupção envolvendo gestores públicos, já que reportagens nesse sentido seriam proibidas.

O jornal O Globo publicou reportagem para lembrar como era o Brasil a partir de 13 de dezembro de 1968, quando o marechal Artur da Costa e Silva, segundo presidente da ditadura militar, divulgou o Ato Constitucional de número 5 (AI-5), há 55 anos. Além de suprimir liberdades individuais dos brasileiros, o decreto conferiu ao chefe do Executivo o poder de fechar o Congresso Nacional, as assembleias estaduais e de cassar parlamentares críticos a ele. Costa e Silva não perdeu tempo e fez tudo isso logo no dia seguinte à edição do texto.

“Editado o Ato 5”, informou O GLOBO no dia 14 de dezembro em letras garrafais, na primeira página. Abaixo, vinham enumeradas as “novidades” decretadas pelo documento: “congresso em recesso, confisco de bens, suspensos os habeas corpus políticos, restabelecidas as cassações e liquidada a vitaliciedade”. Considerado por historiadores um golpe dentro do golpe (de 1964), o AI-5 foi uma carta branca do governo para o governo punir como bem entendesse os seus opositores políticos.

O ano de 1968 havia sido marcado pela mobilização popular contra o governo militar. Depois da morte do militante do movimento estudantil Edson Luís de Lima, assassinado pela polícia em março, no Rio, houve uma série de grandes manifestações que sofreram repressão e culminaram na Passeata dos Cem Mil, em junho. No mês seguinte, a ditadura proibiu a realização de protestos e começou a intervir diretamente nas universidades públicas. Paralelamente, o movimento operário se voltou contra o regime, que passou a enfrentar também oposição mais forte no Congresso Nacional. Eram diversos setores reivindicando o retorno da democracia, quatro anos após o golpe de 1964.

O estopim para o AI-5 foi o discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves (MDB), em 3 de setembro de 1968, com duros ataques à ditadura, convocando a população a boicotar os desfiles de 7 de setembro e chamando o Exército de “valhacouto de torturadores”. O Exército exigiu uma punição para o parlamentar da oposição. Como a Câmara se recusou, o governo reagiu com o AI-5.

Durante seus dez anos de vigência, o documento fundamentou a cassação de 110 deputados federais e sete senadores, 161 deputados estaduais, 22 prefeitos e 22 vereadores. No total, essas cassações descartaram arbitrariamente o desejo de mais de seis milhões de votos no país. Por meio do AI-5, também foram cassados três ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), além de professores universitários e pesquisadores. Todos eles críticos ao regime militar. Qualquer indivíduo acusado de crime político poderia ser preso sem direito a habeas corpus. Imediatamente, centenas de pessoas foram encarceradas e torturadas sem justificativa ou direito a defesa, por tempo indeterminado.

“Entre 1964 e 1968, a população ainda experimentava relativa liberdade no regime militar. Mas a linha dura foi ganhando força, ocupando espaços de poder. Havia um projeto político nacionalista, que trabalhava com a ideia de transformar o Brasil em uma potência. Mas seus entusiastas queriam, antes de tudo, eliminar os opositores, excluir as vozes dissonantes. Trabalhavam com a ideia de resgate dos valores tradicionais, falavam em regeneração da nação. O AI-5 representa em última instância a vitória desse projeto”, explica o professor e historiador Adriano de Freixo, da UFF.

Pesquisador do Centro de Documentação Pública da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), o professor Sérgio Praça argumenta que o AI-5 acabou com a pretensão de setores minoritários das Forças Armadas que pretendiam devolver o poder aos civis. Ele destaca também que o AI-5 foi utilizado para legitimar uma série de práticas que não estavam expressamente declaradas.

“Àquela altura, havia clareza sobre três coisas: que os civis não voltariam ao poder tão cedo, que a liberdade política tinha sofrido um baque enorme e que a imprensa estaria sujeita à censura prévia. As incertezas eram sobre quanto tempo o Congresso ficaria fechado e se haveria tortura ou não. O AI-5 foi decisivo para o uso desenfreado da tortura, porque era a legislação que, tacitamente, permitia isto. Ele não dizia que podia torturar sem problemas, mas dava um entendimento de que tudo era permitido para perseguir os comunistas nos meios sociais”, analisa Praça.

Costa e Silva esteve próximo de ser presidente antes, mas perdeu a disputa para Castelo Branco, que, na ocasião, assumira o posto com o suposto desejo de entregar o poder brevemente aos civis. Mas, aos poucos, os defensores dessa ideia, chamados de castelistas, minoritários, perderam força. Costa e Silva assumiu o Executivo em 1967 com o desejo de permanecer na cadeira por bastante tempo. O Congresso Nacional permaneceu fechado por 10 meses: seria reaberto apenas em outubro de 1969, para a realização das eleições presidenciais que acabariam conduzindo Emílio Garrastazu Médici à presidência e elegendo o vice Augusto Rademaker.