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Número de cotistas no serviço público está abaixo dos 20% previstos em lei, mostra pesquisa

De acordo com a pesquisa, os números são incompatíveis com o que se esperava do desenvolvimento da Lei de Cotas.

O número de ingressantes cotistas no serviço público está abaixo dos 20% previstos em lei, mostra pesquisa inédita do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) divulgada nesta semana. O estudo “Judicializações decorrentes da aplicação da Lei de Cotas nos concursos públicos e processos seletivos”, traçou um levantamento com o objetivo de identificar quais são os entendimentos consolidados no Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à aplicação da Lei de Cotas, diante da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) n° 41, de 2017, que questionou a validade da legislação.

A pesquisa foi liderada por Layla Cesar, advogada e pós-doutoranda em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). A investigação sistematizou o volume de processos do STF, para mapear os entendimentos consolidados pelo tribunal, que valem como referência para todo o Poder Judiciário. Ao todo, 129 processos que faziam referência à Lei de Cotas (n° 12.990) foram analisados.

– O levantamento reuniu dados sobre o desempenho da política de cotas analisando concursos públicos que tiveram edital publicado entre 2014 e dezembro de 2019. O resultado: o número de ingressantes através do sistema de reserva de vagas estava abaixo dos 20% fixados pela lei. Só 15,4% foram identificados como cotistas – explicou Layla.

Dificuldade em cumprir a lei

O dado expressa uma situação ainda mais grave quando analisado o cargo de professor do magistério superior, já que o percentual reservado para negros foi de 0,53%.

– Luís Mello e Ubiratan Resende são dois estudiosos que se propuseram a entender o tema no âmbito das universidades e levantaram 63 editais, feitos entre 2014 e 2018, e somaram o quantitativo geral de vagas oferecidas. Eles contabilizaram que foram ofertadas 18.132 vagas e só 964 (5,3%) foram ocupados por negros e 2,8% por cotistas PcD (pessoas com deficiência). Os outros 91,9% foram para ampla concorrência – acrescentou a pesquisadora.

Os números são incompatíveis com o que se esperava do desenvolvimento da Lei. As principais variáveis encontradas pelos pesquisadores para o mau desempenho estão relacionadas a inconsistências na interpretação do texto legal. Isso conduz a falhas na elaboração dos editais, provocando o fracionamento de vagas, erros no desenvolvimento dos processos seletivos com múltiplas fases e problemas na ordem de nomeação, segundo os estudiosos.

Para que a democratização e o acesso de parcelas mais amplas da população a uma vaga no setor público de fato ocorra, a pesquisa buscou elementos jurídicos sólidos, com o intuito de evitar o excesso de judicialização na disputa por vagas envolvendo a Lei de Cotas.

Veja abaixo as recomendações normativas sugeridas pela pesquisa para sanar o excesso de judicialização:

Reserva de vagas para concursos das Forças Armadas;
Reserva de vagas para cargos temporários militares;
Serventias extrajudiciais;
Efeitos da ordem classificatória sobre a carreira funcional;
Vacância após a nomeação;
Fracionamento de vagas;
Capacitação e treinamento dos magistrados;
Ampliação da lei de cotas para o mercado privado;
Monitoramento e avaliação da política;
Detalhamento de editais;
Individualização dos pareceres e
Consolidação no formato da lei.
Concurso Nacional Unificado

A pesquisa é uma das ações que constitui a jornada de organização do Concurso Nacional Unificado (CNU) e faz parte de um esforço que a SGP e a Diretoria de Provimento e Movimentação de Pessoal (DEPRO) vêm promovendo para democratizar o acesso aos cargos de servidores públicos.

De acordo com a secretária adjunta de Gestão de Pessoas do MGI, Regina Camargos, há um desafio de segurança jurídica sobre a Lei de Cotas desde a implementação, que suscita debates sobre comportamentos racistas, preconceituosos e discriminadores, em especial durante a realização de concursos públicos.

– Existe a ideia de que o setor público é mais permeável e mais aderente a certos princípios de direitos humanos. No entanto, ao fazer concursos em que a presença de elites e classes dominantes brancas é acentuada, há muito preconceito escondido embaixo de camadas de discursos aparentemente neutros e preocupados com normas – afirmou Regina Camargos.

Crachá para não ser confundida

A estabilidade foi decisiva para a psicóloga Luciana Basílio, de 46 anos, trocar a clínica privada pelo atendimento ao público como servidora da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Mas o contraste entre sua transformação pessoal viabilizada pelo concurso e a presença reduzida de outros concursados negros a deixa desconfortável, sentindo-se muitas vezes invisibilizada:

— Nos atendimentos que presto, as pessoas demonstram surpresa quando me veem. Uso crachá durante toda a minha jornada de trabalho para não ser confundida.

Para a cientista política Vanessa Campagnac, gerente de Dados do República.Org, as cotas provocaram alterações visíveis, mas o setor público precisa direcionar melhor suas ações afirmativas para ter uma mudança estrutural:

— Provocamos alterações na vida de diversas pessoas individualmente, mas ainda é frustrante olhar os números como um todo. É preciso continuar, para que a entrada de mais negros no serviço público inspire outros e, assim, essa transformação seja acelerada. Sem políticas em diversos setores, o processo histórico de desigualdade não será mitigado.

Metodologia do estudo

A pesquisa nasceu do interesse do MGI em entender como se posiciona o Judiciário no julgamento de ações judiciais envolvendo as cotas para negros em concursos públicos.

O recorte de processos com circulação só no STF ocorreu porque nele estão concentrados o maior número de ações coletivas julgadas a partir de 18 de junho de 2017, data da ADC 41, que determinou que a Lei de Cotas era constitucional e definiu as principais teses para sua interpretação.

– Não vai existir uma lei perfeita, que não sofra nenhum tipo de contestação. Sempre haverá uma interpretação a ser disputada junto ao judiciário. O que queremos é buscar formas de diminuir a margem para divergência. Isso traz decisões mais uniformes e maior segurança jurídica, sem cada magistrado decidir algo diferente sobre a mesma norma – avaliou Layla Cesar.

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