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Amazonas

Maestro Júlio Medaglia homenageia Amazonino: criou uma das melhores orquestras do país

Maestro diz que Amazonino foi “ser humano sensível, apaixonado” e “fez parte, em grande estilo, da minúscula quantia de políticos brasileiros que aprecia a produção cultural.

O maestro Júlio Medaglia, em artigo publicado na revista Concerto, disse que o povo amazonense, nem os cultores da boa música vão se esquecer que o ex-governador do Estado, Amazonino Mendes, criou uma das melhores orquestras do país e incentivou a formação de uma rica atividade cultural em uma das mais belas casas de cultura do Brasil, o Teatro Amazonas, em Manaus.


Medaglia foi o primeiro maestro da Amazona Filarmônica e fez uma homenagem a Amazonino Mendes, que morreu no dia 12 de fevereiro, em São Paulo, e foi responsável pela restauração do Teatro Amazonas e criador da Amazonas filarmônica.

A íntegra do artigo:

Atrás da pauta – Júlio Medaglia

Amazonas Filarmônica e Amazonino Mendes

No dia 12 de fevereiro, faleceu, em São Paulo, o ex-governador do Amazonas, restaurador do Teatro Amazonas e criador da Amazonas filarmônica

Uma das mais deslumbrantes casas de espetáculos brasileira é, sem dúvida, o Teatro Amazonas, em Manaus. Suas linhas arquitetônicas são clássicas de influências renascentista e eclética”, e grande parte do material usado na construção foi importada da Europa: as colunas de aço que sustentam suas estruturas são da Escócia; os 198 lustres e os mármores das escadas, das colunas e das esculturas, de Carrara. Na parte externa do teto chama a atenção uma gigantesca cúpula ornada com 36 mil pequenas peças de vidro colorido importadas da Alsácia nas cores da bandeira brasileira. O salão possui setecentos lugares entre plateia e três pavimentos de camarotes. O teto interno côncavo foi pintado em Paris, assim como as paredes do salão nobre, com figuras da dança e de óperas, além de uma homenagem a Carlos Gomes.

Toda essa riqueza só foi possível graças ao período áureo do ciclo da borracha. Iniciando suas atividades em 1897, o teatro recebeu os maiores artistas de todas as partes do mundo, a maioria dos quais nem sequer se apresentava depois em outras regiões do país.

Terminado o ciclo da borracha, porém, o teatro ficou por várias décadas abandonado. Chegou a ser usado como depósito de materiais diversos – inclusive de querosene de avião no período da guerra – e teve suas cadeiras arrancadas para abrir espaço à prática de futsal.

Exatamente um século após a inauguração, o então governador do estado, Amazonino Mendes (1939-2023), concluiu uma restauração completa do teatro, trazendo-o de volta ao glamour da “belle époque” tropical. E levou para a cerimônia de inauguração nada menos que uma orquestra do Rio de Janeiro para acompanhar os gorjeios do tenor José Carreras.

Fui convidado para essa solenidade e tive o prazer de conhecer Amazonino Mendes. Advogado de formação, empresário no dia a dia, era um homem de grande formação cultural. Ser humano sensível, apaixonado por diversas áreas da produção artística – sobretudo música e cinema -, fez parte, em grande estilo, da minúscula quantia de políticos brasileiros que aprecia a produção cultural, que a trata com respeito e apoio e não como uma dispensável perfumaria.

Em meio àquelas festividades de um novo ciclo de vida daquela casa, em dado momento, Amazonino me perguntou: “E agora, maestro, vamos criar uma orquestra para este teatro?”. “Podemos pensar numa orquestra de nível internacional?”, Indaguei. “In-ter-na-ci-o-nal?”, respondeu ele.

Voltando a São Paulo, entrei em contato com o violinista Clemente Capella, que durante quarenta anos foi spalla do Teatro Municipal, e com o professor Sérgio Cascapera, trompetista da Osesp. Convidei-os para uma viagem a diversos países a fim de selecionar e contratar bons músicos para forma a Amazonas Filarmónica. Pensei nessa viagem internacional, pois, como sabia, nossos melhores músicos já estavam instalados em nossas melhores orquestras.

Menos de seis meses depois, no dia 19 de setembro de 1997, uma sinfônica completa se reunia, pela primeira vez, no palco daquele centenário teatro. Amazonino proferiu, então, um emocionante discurso para uma plateia lotada de manauaras e de jornalistas nacionais e internacionais. Terminada sua fala, repleta de emoção, ele me passou uma batuta para que eu acionasse aquela nova e multinacional máquina cultural. Pedi aos músicos que ocupassem os lugares habituais de uma sinfônica. Antes de iniciar, porém, fui ao microfone e proferi as seguintes palavras: “Prezado governador Amazonino mendes, estes músicos que o senhor e o público estão vendo neste palco não se conhecem. Pior. Não podem conversar, pois falam línguas diferentes. Aliás, governador, tudo no mundo foi feito para separar pessoas, não é verdade? O senho mesmo, que faz política em benefício do seu povo, teve de entrar num partido. E partidos são instituições que separam pessoas e ideias. No hemisfério norte de nossa América existe um país maravilhoso, criativo, rico, culto, que já recebeu mais da metade dos prêmios Nobel distribuídos. No entanto, só porque indivíduos têm pele mais escura que as de outros, já encontraram motivo para se desentenderem. Lá existem até leis segregacionistas, além de execráveis manifestações de ódio racial. Os ingleses criaram um esporte e se referem a ele como play football, ‘brincar com a bola nos pés’. No entanto, quando essa brincadeira se inicia, a plateia se divide, uns se identificando com um grupo de ‘brincalhões’ e outra parte com outro. No país mais civilizado do mundo, onde essa brincadeira foi inventada, aconteceram as mais bárbaras agressões entre torcedores. ‘Religião’, senho governador, vem de religar pessoas. No entanto alguns cultivam a sublime divindade de uma forma, outros, de outra – e aí já nascem conflitos. Alguns amam até o mesmo Deus, o mesmo Cristo, e, ainda assim, por razões minimamente subjetivas, se digladiam como ocorreu na Irlanda do Norte. Senhor governador, estes seres humanos que hoje pisam pela primeira vez este palco não me conhecem, não se conhecem e não conversam, pois cada um fala uma língua, cada um toca um instrumento diferente. Mesmo assim, com um simples gesto da batuta que o senhor me deu, eles vão apresentar uma das maiores criações musicais do ser humano, com perfeição, harmonia e sublime magia, como se fossem irmãos gêmeos, filhos da mãe música”.

Nesse momento fiz um simples gesto e todos executaram impecável e emocionantemente o primeiro movimento da Quinta sinfonia de Beethoven. A partir de então, estava instalada uma das melhores orquestras brasileiras.

Em 2000, voltei a São Paulo para dirigir o Teatro Municipal. As atividades da Amazonas Filarmônica e do Teatro Amazonas, contudo, seguiram cada vez mais criativas e ousadas conduzidas pelo maestro Luiz Fernando Malheiro. E já há bom tempo acontece naquele teatro o mais importante festival de ópera do país.

É muito possível que, com o passar do tempo, os amazonenses esqueçam que esse governador, nos vários cargos públicos que atuou, operou as mais radicais e criativas transformações urbanas, hospitalares, culturais, educativas e humanas do Estado. Mas, certamente, nem o povo amazonense, nem os cultores da boa música vão se esquecer que Amazonino Mendes criou uma das melhores orquestras do país e incentivou a formação de uma rica atividade cultural em uma das mais belas casas de cultura do Brasil, o Teatro Amazonas, em Manaus.

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