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Brasil

Narcogarimpo: Facções criminosas apostam em crimes ambientais para lavar dinheiro e diversificar negócios na região amazônica

Cadeia vai da produção de cocaína e mineração de ouro na América do Sul à exportação de commodities para Europa; especialistas defendem cooperação internacional.

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Na maior floresta tropical do mundo, facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e dissidências das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) exploram novas frentes de negócio. Se antes o avanço do tráfico de cocaína era uma das maiores preocupação dos países amazônicos, nos últimos anos o crime ambiental ganhou força, acompanhando a valorização da coca e do ouro no mercado internacional. Para especialistas ouvidos pelo jornal O Globo durante a Conferência de Segurança Internacional do Forte, no Rio de Janeiro, o fenômeno — conhecido como narcogarimpo — se tornou um importante aliado dos grupos criminosos na lavagem de dinheiro, num esquema que inclui de criptomoedas até a exportação de commodities, com ares de legalidade, para multinacionais.

Para Robert Muggah, cientista político canadense e co-fundador do Instituto Igarapé, há poucos lugares no mundo com uma densidade de grupos organizados maior que a Amazônia, sobretudo nas regiões de fronteira entre Brasil, Colômbia, Peru e Bolívia. Segundo ele, tais grupos se aproveitam da desigualdade e dos altos níveis de informalidade nessas áreas — onde o Estado historicamente tem dificuldade de entrar — para expandir seus mercados por meio de minas ilegais e de outros crimes ambientais. Além do lucro com a diversificação de negócios, o narcogarimpo tem um papel estratégico na lavagem de dinheiro, explica.

— Eles lavam dinheiro por meio de commodities ambientais, extração madeireira, grilagem de terras, mineração, tráfico de animais selvagens. Às vezes, lavam até com produção de soja ou na pecuária, onde existem práticas ilícitas. O que estamos vendo não é apenas um aumento no tráfico de cocaína pela Amazônia, mas também dos narcogarimpeiros — aponta Muggah ao GLOBO. — Essa é uma mudança muito assustadora, porque mais de 90% do desmatamento na Amazônia é ilegal, e agora isso está sendo acelerado pela influência do crime organizado.

Aumento na pandemia

A presença de facções na floresta cresceu especialmente a partir da pandemia, em paralelo ao salto no preço da cocaína e do ouro no mercado internacional. De acordo com um relatório das Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) de 2023, 42 grupos atuam na região, entre eles 13 brasileiros. Segundo Muggah, esses fatores estão interligados:

— Durante a Covid-19, a globalização ficou paralisada, inclusive para os mercados ilegais, que usam os mesmos corredores dos legais. O policiamento também recuou, junto com os programas de fumigação na Colômbia, levando ao aumento da produção de cocaína. Quando as restrições afrouxaram, houve uma explosão no tráfico, grande parte passando pela Amazônia e indo para a Europa — explica, estimando que “cerca de 40% da cocaína produzida na América do Sul passa pela Amazônia”. — No caso do ouro, o valor subiu porque os mercados costumam migrar para esse tipo de reserva em tempos de instabilidade geopolítica, elevando a procura no mundo. Na maioria dos países, todo o sistema através do qual o ouro é garimpado ilegalmente e depois lavado para mercados legais não é digitalizado, então é facilmente manipulado. Por isso estamos vendo o PCC, o Comando Vermelho (CV) e outros grupos entrando nisso: é um negócio de baixo risco e alto retorno.

Cenário na Colômbia

Os impactos dessas mudanças no mercado ilegal também são sentidos na Colômbia, maior produtora de cocaína do mundo. Nancy Patrícia Gutiérrez, ex-ministra do Interior e ex-presidente da Câmara e do Senado no país, lembra que as guerrilhas se fortaleceram “a partir do cultivo da coca”, inicialmente com propósitos políticos, mas nos últimos anos migraram para outras atividades criminosas como garimpo ilegal de ouro e contrabando de imigrantes. Para Gutiérrez, o crime organizado desafia a democracia no país: no mês passado, o pré-candidato à Presidência, Miguel Uribe, foi vítima de um atentado em um comício em Bogotá.

— Hoje em dia existem vários territórios onde há grupos de diferentes níveis, transnacionais e locais, que fazem parte da cadeia produtiva das economias ilegais. Isso teve um impacto na governança da Colômbia, porque incide na corrupção, no financiamento político, e agora eles se dedicam a gerar terrorismo e caos, colocando em risco a democracia — afirma em entrevista ao GLOBO, apontando também seus efeitos econômicos, umas vez que “os lucros não beneficiam as contas publicas”.

O avanço do narcogarimpo também está por trás das tensões entre grupos criminosas na região cocaleira de Catatumbo, na fronteira entre Colômbia e Venezuela, que, no início do ano, levaram ao deslocamento forçado de 56 mil pessoas em apenas dois meses. Segundo Gutiérrez, grupos criminosos disputam áreas de “cultivo de ilícitos e exploração de ouro” na divisa entre os países. Por outro lado, há também um impacto ambiental e social para comunidades locais, incluindo tribos indígenas que vivem isoladas, pontua a ex-ministra.

— À medida em que o preço do ouro subiu, a fronteira entre Colômbia, Venezuela e Brasil se tornou uma importante área de mineração. Como as exigências ambientais e a legalização dos títulos de mineração são exigentes, o mais comum tem sido a exploração ilegal, que gera muita contaminação hídrica. Há ainda um grande problema com o desmatamento relacionado às organizações criminosas, que negociam madeira e [investem em] pecuária — explica a ex-ministra. — Os povos indígenas que habitam a Amazônia estão em grave risco, porque muitos estão fora do alcance das autoridades dada a dispersão das comunidades.

Destino europeu

A outra ponta do narcogarimpo, por sua vez, alcança mercados europeus, norte-americanos e asiáticos, explica Muggah. De acordo com o cientista político, enquanto as apreensões de cocaína em portos europeus atingiram níveis recordes nos últimos anos, os lucros com as exportações de ouro e commodities fruto de crimes ambientais acabam em paraísos fiscais, offshores e reservas em criptomoedas. Em alguns casos, explica, falta de rastreabilidade faz o ouro e outras commodities ilegais pararem em fábricas de multinacionais ao redor do mundo:

— Há uma convergência de mercados legais e ilegais. Enquanto para algumas commodities agrícolas, como certos tipos de soja e madeira, os compradores são forçados a exigir uma conformidade da fonte original, podendo até testá-las geneticamente, ainda não há um sistema adequados para outras commodities. Parte do ouro acaba em produtos de empresas internacionais e é lavado usando criptomoedas.

De acordo com Maria Rosa Sabbatelli, chefe da Unidade de Ameaças e Desafios Globais e Transregionais de Política Externa da Comissão Europeia, “os grupos criminosos operam redes sofisticadas para contrabandear commodities, muitas vezes usando rotas na África e na Europa”. Segundo ela, tal cenário explica, por exemplo, a presença do PCC no Velho Continente, enquanto as máfias albanesa e italiana mantêm células na América Latina. Sobre o narcogarimpo, ela alerta:

— A demanda europeia por commodities pode contribuir indiretamente para a degradação ambiental se a cadeia de abastecimento não for monitorada.

Cooperação internacional

Os especialistas concordam que, devido aos desafios de policiamento no terreno, o caminho possível tem sido a cooperação internacional. Segundo Marcello Della Nina, chefe da Coordenação-Geral de Combate a Ilícitos Transnacionais do Itamaraty, o Brasil tem apostado em algumas iniciativas de enfrentamento ao narcogarimpo do ponto de vista diplomático, uma vez que “o crime ambiental já é a terceira atividade mais lucrativa para as organizações criminosas”. De acordo com ele, o país tem defendido a inclusão de protocolos específicos no âmbito do Tratado das Nações Unidas sobre Combate ao Crime Organizado. Enquanto isso não acontece, acordos têm sido firmados com vizinhos e aliados europeus.

— Em 2023, durante a Cúpula de Belém, estabelecemos uma comissão especial sobre segurança pública no âmbito do Tratado de Cooperação Amazônico. O tratado é antigo, tem mais de 40 anos, mas não falava nada sobre segurança pública. Agora ela propicia uma plataforma de melhor coordenação entre os países amazônicos para combater esse tipo de crime — destaca Della Nina ao GLOBO. — Recentemente, aprovamos em Viena uma resolução importante na qual pela primeira vez foram identificados quatro áreas prioritárias de combate ao crime ambiental: mineração ilegal, tráfico de flora, tráfico de fauna e tráfico ilegal de resíduos.


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