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Indigenista diz que tribo da Amazônia com apenas três indivíduos viveu massacre promovido por brancos

Eles contam, segundo o indigenista, que todos os indígenas capturados foram obrigados a deitar no chão, de bruços. E os brancos foram cortando o pescoço de um a um.

Pakyi se banha na floresta dentro do território Piripkura, em Mato Grosso. (Foto: Victor Moriyama)

Trinta e quatro anos após o primeiro contato com a equipe da Fundação Nacional do Índio, a dupla Pakyi e Tamandua Piripkura, tio e sobrinho que vivem na região de Colniza e Rondolândia, na Bacia do Rio Madeira, na Amazônia, só sabe falar uma única palavra em português: “Tchau”. Mais nada.

— Eles ficam felizes porque sabem que você vai embora — conta o indigenista Jair Candor, que atua com grupos indígenas isolados há 35 anos, quando começou a trabalhar na Funai, e cuja história foi contada em reportagem publicada ontem pelo The New York Times.

A Funai já sabia da existência do povo Piripkura, que quer dizer borboleta, desde a década de 1980, quando a irmã de Pakyi foi resgatada de trabalho escravo numa fazenda do Mato Grosso. Naquela época, não havia acesso por estradas às fazendas. Os peões eram levados de avião e deixados lá no meio da floresta, para abrir pastos. Era a chamada “frente de expansão” na Amazônia, formada por madeireiros, futuros fazendeiros e homens de garimpo. Abusada diversas vezes, a indígena Rita sofreu vários abortos. Não pode mais ter filhos. Só foi resgatada depois que um peão matou outro por causa dela. Rita tem hoje perto de 60 anos — não se sabe ao certo — e foi a responsável por acompanhar a equipe de Candor e servir de intérprete, ao lado do seu segundo marido, do povo Karipuna, de Rondônia.

“O barulho” do mel

Candor levou três meses em busca de vestígios na mata atrás de Pakyi e Tamandua. Os “índios borboleta” viviam isolados numa área que estava sendo ocupada pela “frente de expansão”. O indigenista achou os dois por causa do barulho que faziam para pegar mel. Tamandua, com idade entre 16 e 18 anos, estava no topo de uma árvore. O tio, esperava embaixo e fugiu quando percebeu a aproximação de pessoas.

— O Tamandua tremia tanto de medo que quase caiu. Ele só gritava “Não me mata! Não me mata!” No idioma dele. Só se acalmou quando a Rita chegou e começou a falar e pedir calma. Ele reconheceu que era ela — conta o indigenista.

Já no chão, Tamandua chamou pelo tio, que ganhou coragem e se aproximou. Pakyi tinha na época cerca de 25 anos, idade calculada por Candor, que tinha 28 e hoje tem 63 anos.

O medo dos homens brancos era a principal marca dos dois jovens indígenas. Conhecido como “índios borboleta”, o povo Piripkura era de paz. Muitos eram mortos até por povos indígenas guerreiros, como os Gaviões e os Oros, que quando encontravam com outros matavam para não serem atacados. Rita se lembra que antes da chegada dos invasores a aldeia era grande, eles faziam roça e havia muitos parentes.

Os encontros com os brancos nunca foram amigáveis. Um dos massacres mais lembrados ocorreu quando um grupo da família seguiu de canoa pelo rio e outra parte ficou às margens, esperando a volta da embarcação para também cruzar o rio. No meio do caminho, foram interceptados por um barco de brancos. Foram devolvidos à margem de onde saíram e os parentes correram.

— Eles contam que todos os capturados foram obrigados a deitar no chão, de bruços. E os brancos foram cortando o pescoço de um a um — relata Candor.

Segundo Candor, foram os ataques que obrigaram os Piripkura a abandonarem suas malocas e se embrenhar na floresta, que ainda era densa:

— Não tinham mais sossego. Era uma questão de sobrevivência e eles buscavam se refugiar em locais de difícil acesso.

Mas nem a vida nômade adiantou. Só restaram Pakyi, Tamandua e Rita, que vive na terra indígena do atual marido, em Rondônia. Rita conta que Pakyi matou seus dois filhos, os dois com menos de 5 anos. Não há detalhes sobre as mortes.

Candor achou e prometeu apoio para a dupla da floresta. Mas a Funai não cumpriu. A ajuda durou apenas até 1992, quando a base foi transferida para outra região de Mato Grosso.

Pakyi e Tamandua já não conseguiam mais fazer fogo friccionando pauzinhos. Iam sempre na base da Funai para acender uma tocha, que levavam para a mata. Com o sumiço dos funcionários da Funai, Tamandua se arriscou a ir a uma fazenda pedir para acenderem a tocha, por mímica. Acabou refém. Trancaram ele numa casa e não o deixaram mais sair. O tio fugiu, sozinho.

Não se sabe quanto tempo Tamandua ficou refém, mas ele acabou encontrado de novo por Candor e resgatado em 1998. Desnutrido e sozinho na mata, Pakyi estava debilitado. Na fazenda, Tamandua contraiu malária. Mesmo assim, a Funai mandou logo depois devolvê-los para a vida na mata.

— Foram abandonados — resume Candor.

O indigenista, no entanto, deixou uma tocha acesa com a dupla, que só se apagou em 2016 de tanto que cuidaram dela.

O próximo encontro da dupla com Candor só aconteceu em 2007, quando os índios Gavião, percebendo a destruição cada vez mais acelerada da floresta na região, acionou a Funai para que achasse novamente os Piripkura. A busca demorou de maio a agosto e o indigenista já estava exaurido quando conseguiu avistar os dois pescando num igarapé.

O lugar já não era mais o mesmo. Candor diz que o que mais se via eram boiadas, estradas e caminhões com toras de madeira do desmatamento, dia e noite. Nem os indígenas, que já não confiava nos homens da Funai.

— Eu cheguei neles primeiro, ainda sem a Rita. O Tamandua estava com uma machadinha e o gritava. “Mata ele, mata ele”. O Tamandua não teve coragem, e só me bateu — recorda.

Susto com pontos

Só com a chegada da Rita e do marido dela as agressões pararam. Tio e sobrinho acabaram convencidos que Candor era o mesmo de anos atrás, só estava mais velho. Levados para o acampamento da Funai, os dois foram vacinados e tiveram a saúde avaliada. Três dias depois, porém, uma intensa dor na barriga de Pakyi obrigou o indigenista a levá-lo a um hospital, em Ji-Paraná.

Pakyi teve de retirar a vesícula e quando voltou da anestesia gritou e pulou tanto de horror que os pontos abriram.

— Quando viu o rasgo, ele endoidou — diz Candor.

Só depois de muita explicação do intérprete ele ficou quieto. O corte da cirurgia teve de ser fechado com um equipamento similar a um grampeador. Mas nos dias que se seguiram no hospital ele pegou malária. Depois, catapora.

— Ele chegou com uma doença e arrumou mais duas. Pensei que não ia resistir. Mas dois meses depois ele teve alta e foi para o nosso acampamento, onde ficou tomando os remédios até sarar. Tamandua ficou junto — relembra o indigenista.

Por volta de 2020, outro susto. Tamandua teve de tirar um tumor da cabeça e foi levado para um hospital em São Paulo. O tio também teve de fazer um tratamento na próstata.

Os dois ficaram bem, mas Pakyi, que tem cerca de 60 anos, já não tem o mesmo vigor de antes para andar pela mata. Montou um abrigo perto da base da Funai, que foi reativada, e fica no entorno. Sai do seu esconderijo apenas para visitar os funcionários da Funai e a irmã Rita. Quando aparece, recebe carne, peixe e mantimentos.

Futuro incerto

Candor diz que boa parte da floresta foi derrubada por invasores, que dizem ter comprado as terras no passado, na época das “frentes de expansão”.

— Para os índios ficou horrível. Vivem em ilhas no mato, onde cabem poucas pessoas. Quase não tem caça e peixe. Alguns criam pequenos animais, mas muitos trabalham para madeireiros — explica.

Tamandua, afirma Candor, vive sozinho na mata e só aparece de vez em quando.

Para o indigenista, só a demarcação da TI Piripkura pode dar alguma tranquilidade à dupla. Quem sabe Tamandua se anima a achar uma companheira e ter filhos, salvando os índios borboleta da extinção.

— Os fazendeiros dizem que é muita terra para pouco índio. Mas muitas fazendas têm um, dois, três donos. Algumas ocupam cidades inteiras do Mato Grosso. Por que é muita terra para índio se para eles é pouco? Se o governo demorar muito para decidir, vai acontecer como o índio do buraco, que morreu e a terra foi ocupada por fazendeiros da região — lamenta.

A história dos Piripkura foi contada num documentário produzido pela Zeza Filmes. Foi o vencedor do prêmio de Direitos Humanos no International Documentary Film Festival Amsterdam, o IDFA, e recebeu o título de melhor documentário no Festival do Rio 2017. A direção é de Bruno Jorge, Mariana Oliveira e Renata Terra.

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