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Brasil

Homem encontrou na Amazônia dois últimos sobreviventes da menor tribo indígena do Brasil

A procura do agente da Funai durou 35 anos até encontrar os sobreviventes na floresta Amazônica, no Mato Grosso.

Documentário de 2017 mostrou os dois indígenas. (Foto: Documentário de Bruno Jorge)

Reportagem publicada pelo jornal O Globo relata que não havia praticamente nada além de floresta tropical por quilômetros, e então os agentes do governo o avistaram: um abrigo improvisado, o fogo ainda latente. Havia dois conjuntos de pegadas, dois facões e dois lugares para redes.

— Ele estava aqui há pouco — disse um dos agentes, Jair Candor, agachado sob o abrigo, no Norte do Mato Grosso, em junho, enquanto seu parceiro tirava fotos.

Candor passou 35 anos procurando por um homem que não queria ser encontrado — e desta vez, ele o perdeu. O homem, Tamanduá Piripkura, viveu sua vida fugindo. Não de autoridades ou inimigos — embora muita gente gostaria de vê-lo morto —, mas da modernidade.

Tamanduá é um dos últimos três sobreviventes conhecidos do povo Piripkura, uma ramificação de um grupo indígena maior que se espalhou por uma grande faixa da floresta. Viveu isolado, no meio da Floresta Amazônica, toda a sua vida, que deve ter cerca de 50 anos.

Seu parceiro no isolamento era seu tio, Pakyi, com quem caminhava pela floresta, os dois nus e descalços, com pouco mais que facões e uma tocha (a terceira sobrevivente, uma mulher chamada Rita, deixou a terra por volta de 1985 e se juntou a outra tribo).

Mas Pakyi, mais velho e mais fraco, recentemente começou a viver perto de uma base do governo brasileiro na floresta dedicada a proteger os dois homens. Ao mesmo tempo, Tamanduá – visto como a melhor e talvez única esperança para a sobrevivência do povo Piripkura – desapareceu.

Os homens estão no centro de uma questão maior que o Brasil vem enfrentando há anos – uma questão que traz grandes consequências para o futuro da Amazônia e dos povos nativos que a habitam há muito tempo.

Quem tem direito à floresta? Os fazendeiros e madeireiros que detêm títulos governamentais sobre a terra, ou dois índios cujos ancestrais estavam aqui antes de o Brasil ter um governo?

Depois que Candor encontrou Pakyi e Tamanduá pela primeira vez em 1989 — em uma árvore, procurando mel — , o Brasil efetivamente ficou do lado dos madeireiros. Nas duas décadas seguintes, o governo não fez nada e a floresta foi cortada por serrarias.

Em 2007, Candor encontrou os dois homens novamente. O governo, sob uma administração esquerdista e influenciado pela mudança de atitudes sobre a preservação da Amazônia, reverteu sua postura. O Brasil protegeu quase 2,6 mil km² de floresta, uma área duas vezes maior que Los Angeles, apenas para Pakyi e Tamanduá.

As proteções enfureceram os proprietários daquela terra. Décadas antes, o governo havia vendido a maior parte do território a colonos por quase nada, como parte de um esforço para incentivar os brasileiros a explorar a floresta e expandir a economia. As pessoas que herdaram ou compraram esses títulos de terra agora estão desafiando as proteções para voltar a arrasar a terra e colocar gado nela.

A luta é liderada pelos Penços, uma família que administra as maiores minas de calcário do estado e possui quase metade da área protegida de Piripkura. Pakyi e Tamanduá não precisam de tanta terra, argumentam, e o governo está violando seus direitos em um esforço velado para impedir a extração de madeira.

— Esses dois índios são vítimas, sendo usados como um meio para promover uma agenda ambientalista — disse Francisco Penço, porta-voz de sua família, em uma recente visita à floresta com seu advogado, com os sapatos cobertos de lama.

Durante séculos, os indígenas foram vistos como obstáculos ao progresso e massacrados em todo o mundo. Mas a crescente pressão nas últimas décadas forçou os governos a proteger as terras indígenas. No Brasil, essas reservas se tornaram um pilar dos esforços para conservar a Amazônia. Quatorze por cento da nação — aproximadamente o tamanho da França e da Espanha juntas — são agora território indígena.

Mas nenhuma tribo conhecida no Brasil é menor que os Piripkura, segundo especialistas, e agora sua proteção está em risco.

Após 15 anos de atrasos, o governo pretende concluir um estudo no início do próximo ano sobre se os Piripkura merecem uma reserva permanente — ou qualquer outro tipo de proteção.

Os Penços e outros oponentes argumentam que a área protegida deveria encolher significativamente ou ser totalmente eliminada, em parte porque Pakyi agora vive perto da base do governo.

Isso tornou essencial para os ambientalistas provar que Tamanduá está vivo.

Em junho, Candor, de 63 anos e barba grisalha, dirigiu seu caminhão do governo salpicado de lama por cinco horas na floresta tropical em uma estrada de terra que os Penços construíram para extrair madeira. Ele estava indo para a base do governo em busca de Tamanduá, que não via há cerca de dois anos.

Logo após sua chegada, uma figura apareceu na porta de tela da base: um índio de 1,20 m coberto com tinta vermelha de uma fruta amazônica. Era Pakyi.

Pakyi entrou cautelosamente a princípio, observando os recém-chegados: agentes do governo e jornalistas do New York Times. Mas ele se aqueceu rapidamente, sorrindo amplamente, agarrando as mãos e puxando as barbas. Ele havia começado a usar roupas, visto que os outros também o faziam. Sua camisa manchada estava do avesso, exibindo o texto no peito: “Nenhum de nós é melhor do que todos nós juntos”.

Embora ansioso para reencenar as caçadas anteriores, ele ignorou ou se recusou a responder a perguntas sobre sua família e seu sobrinho.

Mas, um dia depois, ele se sentou em um tronco e começou a falar. Tamanduá está na mata, disse ele por meio de um tradutor, e não quis ser encontrado.

Uma aldeia destruída

Uma das últimas vezes que Tamanduá foi visto, em 2017, ele e Pakyi foram até a base do governo com um simples pedido: acendam nossa tocha.

Candor havia dado fogo a eles pela última vez em 1998. Ele acredita que eles o mantiveram aceso passando a faísca da tocha para a fogueira e vice-versa, envolvendo as brasas em folhas de bananeira quando chovia.

Pakyi e Tamanduá fazem redes com casca, caçam anta com armadilhas e constroem abrigos com as largas palmeiras do babaçu. Mas já não fazem fogueiras, não usam flechas nem plantam mandioca.

Há menos de um século, os Piripkura viviam em uma aldeia de mais de cem pessoas (talvez muito mais que isso), acreditam os antropólogos, com tecnologia semelhante à de seus vizinhos: fogo, armas, cerâmica, plantações.

Como os Piripkura passaram de uma aldeia para três pessoas não está claro. Os antropólogos reuniram a história em grande parte com base nos relatos da terceira sobrevivente, Rita, que se acredita ser a irmã de Pakyi. Ela disse que sua família lhe disse que as coisas mudaram quando os brancos chegaram.

Na década de 1940, o governo estava distribuindo terras na Amazônia por um preço baixo. “Mais borracha para a vitória!” declarou um cartaz do governo brasileiro de 1943, conclamando os homens a se tornarem seringueiros para ajudar no esforço de guerra dos Aliados.

Muitos colonos massacraram indígenas. O governo brasileiro reconheceu que durante a ditadura militar do país, de 1964 a 1985, pelo menos 8,3 mil indígenas foram mortos.

Em um massacre, uma aldeia de Piripkura foi dizimada, disseram parentes a Rita, que está na casa dos 60 anos. Homens desmembraram corpos, mutilaram órgãos genitais e deixaram vítimas empaladas em troncos de árvores, disse Rita a funcionários do governo.

Quando Rita e Pakyi eram crianças, seu grupo tinha apenas de 10 a 15 membros restantes. Como uma das poucas mulheres, Rita era muito cobiçada. Ela teve dois filhos com um homem de outra tribo e, quando ele morreu de infecção, Pakyi e seu pai a pediram em casamento. “Você está louco?” ela respondeu. “Casar com meu pai?”

Então chegou o momento que separou a família: Pakyi matou os dois filhos de Rita.

Pakyi matou primeiro seu filho mais velho, que tinha cerca de 4 ou 5 anos, porque estava chorando, de acordo com Rita e um relatório do governo de 2012. Pakyi cortou o couro cabeludo do menino e enterrou seu corpo, disse o relatório. Mais tarde, ele carregou a filha pequena de Rita para a floresta e a deixou lá. Pakyi nunca falou sobre isso, disse Candor, e o governo nunca investigou mais os assassinatos.

— Fico surpreso quando dizem que os fazendeiros querem matar os índios — disse Penço. — Nós protegemos Rita quando ela precisou fugir.

‘Ele só pediu para não o matarmos’

A Chácara da Mudança foi o fim do isolamento de Rita. De 1983 a 1985, trabalhou na fazenda, onde começou a vestir roupas e falar português. O relatório de um antropólogo também disse que ela foi abusada e espancada com uma vassoura.

Em 1985, ela fugiu novamente, terminando ao lado de especialistas do governo em busca de sua tribo. Ela mostrou a eles onde sua família havia morado, mas quando eles chegaram, as casas estavam abandonadas.

Em 1989, ela se juntou a outra expedição, desta vez com Candor. No segundo dia, depois de visitarem o túmulo do filho de Rita, eles atravessaram um pântano até uma ilha.

Lá, eles avistaram Pakyi e Tamanduá procurando mel. Pakyi disparou. Tamanduá, em uma árvore, ficou preso.

— Ele começou a tremer — disse Candor. — E ele apenas pediu que não o matássemos.

Por fim, Pakyi e Tamanduá trouxeram Rita e Candor para seu abrigo. O grupo passou duas semanas juntos e, repetidas vezes, Candor fez a Pakyi e Tamanduá a mesma pergunta: onde estavam os outros?

— Eles disseram que morreram. Em outro momento, que eles estão em algum lugar lá fora — disse Candor. — Mas eles nunca disseram onde, por que ou o que aconteceu.

Candor havia descoberto oficialmente um novo povo — uma descoberta que normalmente levaria a proteções do governo. No entanto, no final da década de 1990, o governo havia praticamente abandonado o caso.

Em 2007, outra tribo indígena perguntou ao governo o que havia acontecido com os Piripkura. Candor foi enviado para procurá-los novamente.

Quando ele chegou com Rita, o lugar estava transformado.

— Em todas as direções que você seguia, havia madeireiros, o barulho de motosserras, árvores caídas — afirma Candor.

Após três meses de busca, Candor e Rita estavam preparados para desistir. Então, eles ouviram a dupla conversando à distância. Pakyi e Tamanduá eram uma década mais velhos, mas ainda estavam vivos e sozinhos na floresta.

‘Regras do jogo’

Durante anos, a família Penço extraiu madeira da região, boa parte dela destinada a pisos nos Estados Unidos. As proteções, emitidas em 2008, interromperam abruptamente esse negócio.

O patriarca da família, Celso Penço, havia comprado trechos baratos de floresta tropical do governo décadas antes. Quando ele morreu em 2016, deixou 1,9 mil quilômetros quadrados da Amazônia para sete herdeiros, uma herança com metade do tamanho de Long Island. Dois terços estavam dentro da área protegida de Piripkura.

Os Penços argumentam que os limites são arbitrários e ultrapassados, baseados em vestígios de abrigos encontrados décadas atrás. Em vez disso, Pakyi e Tamanduá deveriam receber 388,5 km², dizem, ou um sexto da atual área protegida.

— Não que a gente acredite que esses dois índios precisem de tanto espaço — disse um dos advogados dos Penços, Rodrigo Quintana.

Para Candor, os Piripkura têm mais direito à terra do que os Penços:

— Se eles têm direito a tudo isso, e os que aqui nasceram, cresceram, viveram e viram aqui seus parentes morrerem?

Para Francisco Penço, filho de Celso Penço, o governo estava mudando as regras do jogo depois de distribuir terras. Se o governo as quer para os Piripkura, deve pagar aos proprietários de terras, alega. Sua família, calcula, teria a receber de US$ 45 milhões a US$ 70 milhões.

Francisco também questionou se os homens estão realmente isolados, lembrando que em várias ocasiões a medicina moderna os manteve vivos.

Em 2018, Candor e um colega carregaram Tamanduá para fora da floresta porque ele não conseguia andar. Em um hospital, os médicos descobriram um coágulo de sangue em seu cérebro.

Pakyi e Tamanduá, segundo antropólogos, acreditavam que a tecnologia moderna vinha de uma divindade acima das nuvens, trazida por brancos em aviões. Agora eles estavam em um voo comercial para São Paulo, a maior cidade da América Latina, para uma cirurgia no cérebro. No aeroporto, tentaram urinar a céu aberto. No avião, Pakyi agarrou os seios de uma mulher.

Eles passaram 45 dias em São Paulo, dormindo em redes que o hospital pendurou para os dois.

— Eles pediam para sair o tempo todo — disse Cleiton Gabriel da Silva, o agente da Funai que os acompanhou. — A cidade foi traumatizante.

A experiência foi especialmente difícil para Tamanduá.

— Cortaram sua cabeça, injetando remédios o tempo todo, sedando-o — recorda Cleiton. — Ele não entendeu que isso era para salvar sua vida.

A última esperança

Pouco depois de retornar, Pakyi começou a ficar perto da base do governo. Ele cozinha passarinhos que os agentes pegam para ele e tenta jogar futebol, batendo na bola com as mãos. Ele e Rita ainda têm um relacionamento tenso, mas todas as noites ele dorme com uma coruja de pelúcia que ela lhe deu.

Tamanduá, porém, desapareceu. Em junho, Candor, acompanhado pelo The New York Times, voltou à base. Encontrou o abrigo com os dois pares de pegadas a apenas 30 minutos de caminhada na floresta.

Para Candor, era a prova de que Tamanduá ainda estava vivo — uma descoberta que pode ser crucial para as proteções.

Ainda assim, a criação de uma reserva indígena Piripkura poderia salvar esta parte da floresta, mas não os Piripkura.

Vários anos atrás, Candor trouxe Pakyi e Tamanduá para a aldeia de outro grupo indígena que falava uma língua semelhante. Candor esperava inspirá-los.

Os antropólogos considerariam qualquer descendência dos dois homens outra geração Piripkura. Ele não acha que Pakyi, com sua idade e temperamento, irá procriar. Mas ele acredita que Tamanduá pode.

— Se houvesse uma faísca entre ele e uma das garotas lá, com certeza — disse Candor.

Mas, na aldeia, as mulheres estavam mais interessadas em seus smartphones.

— (Elas estavam) envolvidas em tecnologia — resumiu. — Não vão querer vir para esta vida aqui, perambulando pela floresta.

Quanto a Rita, grande parte da floresta tropical onde sua família viveu foi arrasada. Assim como a área sagrada onde seu povo, incluindo ela, deu à luz.

Se haveria outro nascimento de Piripkura, ela disse, dependia de uma pessoa: Tamanduá.

— Temos que encontrá-lo — disse ela.

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