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Área na Amazônia equivalente a três países europeus vira ‘terra de ninguém’, aponta estudo

Amazônia tem 118 milhões de hectares de áreas da União e dos estados sem destinação para reservas ambientais ou territórios de povos tradicionais, aponta estudo.

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Uma parcela de terras públicas equivalente à soma das áreas de Espanha, França e Portugal segue sem destino definido na Amazônia Legal. São 118 milhões de hectares de áreas da União e dos estados que até podem estar ocupadas irregularmente, mas que funcionam como se não tivessem donos. O motivo: a inexistência de controle cadastral e a falta de integração entre os sistemas oficiais que deveriam dizer quem controla cada pedaço do território. As informações são do site Nexo.

Um estudo do Instituto Escolhas faz um raio-x das terras públicas federais e estaduais ainda sem destinação formal. Segundo o levantamento, esse conjunto chega a 118 milhões de hectares, resultado da soma de 60,9 milhões de hectares de glebas públicas com 57,1 milhões de hectares classificados como vazios fundiários. Dentro desse total, o estudo aponta 56,4 milhões de hectares já ocupados e 59,4 milhões de hectares sem ocupação consolidada.

area-na-amazonia-equivalente-aEntre essas áreas estão as FPND (Florestas Públicas Não Destinadas). Diferentemente das terras públicas não destinadas em geral, as FPND são florestas cadastradas no CNFP (Cadastro Nacional de Florestas Públicas), reconhecidas como patrimônio público, mas ainda sem definição de uso. Uma vez destinadas, elas podem se transformar em unidades de conservação, concessões florestais ou territórios de comunidades tradicionais.

A última atualização do CNFP, de 2024, publicada pelo SFB (Serviço Florestal Brasileiro), registra 56,5 milhões de hectares de floresta sem destinação na Amazônia Legal.

“É um patrimônio público que está perdendo terreno para a grilagem (apropriação ilegal de terra)”, afirma o cientista Paulo Moutinho, cofundador do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). Ele acompanha o tema há mais de uma década. “Em muitos casos, essas áreas ficaram com sensação de ‘terra de ninguém’”, complementa.

Fraudes

Um dos principais motores da ocupação irregular é o CAR (Cadastro Ambiental Rural), criado pela Lei do Código Florestal, em 2012. O CAR é um registro autodeclaratório, obrigatório para todos os imóveis rurais. Em tese, deveria mapear áreas de preservação permanente e reservas legais, mas acabou sendo usado como comprovação informal de posse, mesmo em áreas públicas.

Por ser autodeclarado e não passar por um processo de comprovação, vem se tornando um documento para oficializar fraudes. Moutinho afirma que cerca de 30 milhões de hectares das florestas não destinadas estão cobertos por CARs com indícios de irregularidades. “Tem CAR no Amazonas com 20 a 30 cadastros sobrepostos na mesma área”, relata.

A consequência aparece no padrão de desmatamento. “Cerca de 65% de tudo que é derrubado em floresta pública não destinada ocorrem dentro de CAR fraudulento”, diz Moutinho. Após a retirada da madeira de valor, parte dessas áreas muda rapidamente de uso. “70% viram pasto e cerca de 25% são abandonados depois da exploração madeireira”, explica.

A pecuária é a principal vilã desse processo, com a figura do “boi zelador” — animal que pasta na área para respaldar a ocupação e manter a aparência de uso produtivo, explica Moutinho. Assim, em vez de representar uma atividade econômica legítima, o rebanho funciona como instrumento de consolidação da grilagem. Em muitos casos, o abate é feito por frigoríficos sem as devidas licenças, alimentando cadeias clandestinas.

Durante anos, essa dinâmica teve apoio indireto do sistema financeiro. “Bancos oficiais aceitavam o CAR como elemento de posse do imóvel, e esse recurso financiava o desmatamento”, diz Moutinho.

Investigações da Repórter Brasil já revelaram que Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), além de instituições privadas que operam crédito rural, intermediaram financiamentos para produtores autuados pelo Ibama, para fazendas com embargos (áreas interditadas) por infrações ambientais, e para frigoríficos que compraram gado de áreas desmatadas ilegalmente.

Investigações da PF (Polícia Federal) estimam que o custo para desmatar um hectare — financiado por terceiros, inclusive com recursos internacionais — variava entre R$ 1,5 mil e R$ 3 mil.

Nos últimos anos, contudo, o perfil de quem financia a devastação vem mudando. “Foi substituído pelo crime organizado, com dinheiro da extração de ouro, do tráfico de drogas e do tráfico de armas”, afirma Moutinho. A combinação de áreas públicas sem destinação, cadastros frágeis e fiscalização insuficiente facilita esse avanço, segundo o cientista.

Caos fundiário

O advogado e professor da UFPA (Universidade Federal do Pará), Girolamo Treccani, que também é assessor jurídico da CPT (Comissão Pastoral da Terra), resume o problema em uma expressão: “Caos fundiário”.

Treccani lembra que decisões do TCU (Tribunal de Contas da União) apontaram que o próprio governo federal não sabe exatamente onde está e qual é a situação jurídica de parte expressiva das suas terras. Em 2023, a governança fundiária foi classificada pelo tribunal como um dos pontos mais críticos do Estado brasileiro.

“Não temos hoje nenhum sistema que permita ter controle da situação”, diz Treccani. Ele explica que o país convive com bases de dados paralelas que não necessariamente dialogam entre si. Os diferentes sistemas são operados por Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), SIGEF (Sistema de Gestão Fundiária) e CAR, sem falar ainda nos cadastros estaduais e nos registros de imóveis.

A falta de integração produz distorções. “No Amazonas, nós temos municípios com mais papel do que terra. A soma das áreas registradas supera a área territorial”, ilustra Treccani. Isso ocorre porque sistemas desconectados permitem que o mesmo pedaço de terra apareça múltiplas vezes em registros distintos.

Para tentar corrigir parte disso, surgiram iniciativas recentes. O SINTER (Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais), regulamentado por decreto em 2016 e alterado em 2022, busca integrar informações fundiárias e imobiliárias. Neste ano, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou o Provimento 195, exigindo que os imóveis tenham base geoespacial administrada pelo ONR (Operador Nacional do Registro).

A implementação, porém, é lenta. “Ao menos 30% dos cartórios do Pará ainda não estão no sistema do ONR”, afirma Treccani. Sem adesão total, não é possível cruzar a matrícula de um imóvel com a área declarada no SIGEF ou no CAR. “A insegurança nasce da falta de sistematização das informações”, resume o professor.

Treccani lembra que, a partir de setembro de 2025, passou a ser obrigatório apresentar o CAR para abrir matrícula no Registro de Imóveis, mas não exige que o CAR esteja validado. Ou seja: um CAR ativo, mesmo com indícios de irregularidade, pode ser usado para iniciar um processo de registro.

‘Brasil nasce de uma grande grilagem’, diz professor da UFMG

O professor Raoni Rajão, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que chefiou até 2024 o Departamento de Políticas de Controle do Desmatamento e Queimadas do MMA (Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima), chama atenção para o efeito imediato de mudanças recentes.

Ele cita o Decreto 12.689, editado pelo governo federal em outubro, que suspendeu até 2029 a obrigatoriedade de registrar no SIGEF (Sistema de Gestão Fundiária) todos os imóveis rurais, independentemente do tamanho. “Ao abrir mão desse controle, o governo cria uma janela para movimentar terra sem passar pelo filtro do SIGEF”, afirma.

A medida se soma a um problema histórico. “O Brasil nasce de uma grande grilagem”, diz Rajão. Ele lembra que, desde o período colonial, o princípio dominante era o da ocupação: mandava quem ocupava, não quem tinha documento. A Lei de Terras de 1850, criada ainda no Império, tentou organizar a posse ao exigir um contrato de de compra e venda para a destinação de terras públicas a pessoas privadas, mas teve aplicação limitada.

No século 20, políticas de colonização ampliaram o descontrole. Rajão cita a “marcha para o oeste” no governo de Getúlio Vargas, a construção da Belém-Brasília por Juscelino Kubitschek e programas da ditadura militar que atrelaram a posse ao desmatamento, como contratos de cessão nas margens da BR 230, a rodovia Transamazônica.

A legislação sobre o tamanho máximo de imóveis rurais privados também variou ao longo do tempo. Em determinados períodos, títulos com mais de 10 mil hectares só podiam ser emitidos com autorização do Senado. Depois de 1964, esse limite foi reduzido para 3 mil hectares e, mais tarde, passou para 2,5 mil hectares, conforme as regras estabelecidas após a Constituição de 1988.

Apesar disso, há registros de imóveis privados com áreas muito superiores, herdados de processos fundiários antigos, com sobreposições e falhas documentais.

Segundo Treccani, da UFPA, muitos títulos privados só poderiam ser conferidos se o Estado tivesse seus arquivos históricos digitalizados — de antigas cartas de sesmaria a títulos emitidos por governos estaduais e federais. “O dever de casa é digitalizar todo o acervo para saber se a origem está em carta de sesmaria ou em emissão válida do governo”, afirma.

Violência avança 

A indefinição fundiária é uma das principais causas do aumento dos conflitos no campo, segundo os especialistas entrevistados. Os relatórios anuais da CPT (Comissão Pastoral da Terra) mostram que a Amazônia Legal concentra a maior parte dos conflitos agrários do país.

Nos últimos anos, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais têm sido as principais vítimas de ameaças, expulsões e assassinatos. Muitas dessas áreas estão dentro de terras e florestas públicas sem destinação formal.

“À medida que a grilagem avança, cresce o fogo, a devastação e o conflito social”, afirma Moutinho do Ipam. Rajão, da UFMG, concorda: “Sem regularização fundiária e sem destinação clara, a Amazônia continuará vulnerável”. Já Treccani, da UFPA, reforça que a saída depende de decisão política: “Sem transparência e sem integração dos sistemas, o problema não vai ser resolvido”.

A câmara técnica responsável por discutir a destinação de terras — criada no governo Dilma, extinta no governo Bolsonaro e recriada na gestão Lula — voltou a funcionar com discussões sobre dezenas de milhões de hectares. Mas até agora poucas decisões formais foram tomadas.

Treccani defende que o processo seja aberto também aos estados e à sociedade civil. Ele cita o princípio constitucional de que “todo poder emana do povo” e conclui: “Transparência é a base da democracia. Terra não é da União, do presidente ou do governador. Terra pública é do povo”.


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