Amazonas
Perícia do MPF aponta que exploração de gás no Amazonas subdimensiona impactos e ignora risco climático
Reportagem da Folha de São Paulo diz que a Eneva afirma não ter sido notificada sobre existência do laudo e afirma que superou exigências legais no licenciamento; governo do Amazonas não respondeu à reportagem.

Reprodução/Lalo de Almeida/Folhapress
Uma perícia do MPF (Ministério Público Federal), elaborada pelo Centro Nacional de Perícia da PGR (Procuradoria-Geral da República), afirma que o empreendimento privado de exploração de gás natural e petróleo na área do município de Silves, no Amazonas, subdimensionou danos ambientais, apontou uma área de influência irreal e deixou de prever o impacto climático do combustível fóssil explorado.
O laudo de 64 páginas, elaborado por três peritos e assinado em 28 de março, foi protocolado pelo MPF na Justiça Federal no Amazonas, onde uma ação pede a suspensão do licenciamento –feito pelo governo do Amazonas, e não pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis)– e da exploração de poços sobrepostos a comunidades tradicionais.
O empreendimento na região de Silves (AM) e Itapiranga (AM), o maior na área de exploração privada de gás e óleo na amazônia, é da Eneva, empresa com faturamento bilionário que estruturou um sistema com dezenas de poços, quilômetros de gasoduto e termelétricas em uma área de floresta preservada e recursos hídricos fartos.
No campo de Azulão, a empresa busca explorar 14,8 bilhões de metros cúbicos de gás. No campo mais recente, o Tambaqui, a expectativa é de exploração de 3,6 bilhões de metros cúbicos de gás, com quase 14 milhões de barris, segundo relatórios da Eneva.
A exploração de combustível fóssil pela floresta está em expansão, com perfurações de poços novos para prospecção, distribuição de dutos em diferentes pontos da mata e formatação do gasoduto. A companhia tem BTG Pactual, BW Gestão de Investimentos, Dynamo e Partners Alpha em sua estrutura societária.
Diante dos apontamentos da perícia, o MPF pediu, na última sexta-feira (16), que Eneva e Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas) –o órgão licenciador– sejam obrigados a apresentar as informações sobre os pontos levantados no laudo.
Além disso, conforme o pedido da Procuradoria da República no Amazonas, deve haver suspensão de atividades de poços de gás e óleo em área sobreposta a um território indígena, e a atividade tradicional de ribeirinhos e indígenas na região deve ser respeitada.
Em nota, a Eneva afirmou que não foi notificada até o momento sobre a existência da perícia. Segundo a empresa, o estudo ambiental “superou as exigências legais”, inclusive nos pontos relacionados no laudo do MPF. “O projeto se limita à produção de gás natural e não envolve transporte ou produção de óleo, nem instalação de oleodutos.”
A exploração de gás contribui para a redução de emissões de gases de efeito estufa, disse a Eneva, pois abastece uma termelétrica em Roraima que substitui usinas a diesel. Nos últimos dois anos, isso evitou a emissão de mais de 300 mil toneladas de CO2, conforme a empresa.
Até esta publicação, o governo do Amazonas não respondeu aos questionamentos da reportagem da Folha.
A perícia do MPF afirma que a área de influência direta e indireta do empreendimento, definida no EIA (estudo de impacto ambiental), não é adequada, sem “critérios claros” e com “homogeneidade forçada”. No caso da influência direta, a faixa traçada foi de 2 km a partir dos gasodutos, segundo o laudo.
No gasoduto de Coari (AM) a Manaus, relacionado ao empreendimento da Petrobras, a área de influência direta foi estabelecida em 10 km para um dos lados, com distância variável no outro lado, limitada ao rio Solimões, compara a perícia.
“A abrangência de alguns dos impactos ambientais é dedutivelmente maior e não estaria restrita aos 2 km, a exemplo daqueles classificados como de alcance regional, especialmente os relacionados a possíveis vazamentos acidentais de óleo, condensado, graxa, produtos químicos e combustíveis”, cita o laudo.
“A contaminação eventual da rede hídrica, seja superficial ou subterrânea, teoricamente teria o potencial de dispersar o contaminante para além desses limites”, completa o documento.
O fato de a exploração de gás ocorrer numa área onde já há exploração de madeira deveria levar a um aprofundamento dos estudos, segundo os peritos.
Os impactos ambientais foram subdimensionados, e o mais significativo tem a ver com a questão territorial, conforme a perícia.
“Na delimitação da área de influência houve a exclusão da maior parte das bacias hidrográficas em que se inserem os corpos d’água diretamente afetados pelo empreendimento”, cita o laudo, que aponta o descumprimento de uma resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente). “A área de influência deveria abranger essas bacias hidrográficas.”
Segundo o MPF, ao longo do Lago Canaçari há relatos de dezenas de comunidades ribeirinhas sobre contaminação da água superficial e subterrânea, além de limitação a acordo de pesca previamente acertado.
O estudo de impacto ambiental, apresentado ao Ipaam e validado pelo órgão do governo do Amazonas, não faz menção a um possível impacto climático do empreendimento, conforme o laudo. Também não houve diagnóstico climático, com inventário de gases de efeito estufa e avaliação de impactos associados ao clima, diz o documento.
O estudo levou em conta apenas a extração e escoamento do gás, sem considerar a unidade de tratamento de gás, as termelétricas, uma estação de produção e uma área de armazenamento e transferência, afirmam os peritos.
“A análise acerca do diagnóstico climático e do impacto climático seria mais apropriada se levasse em conta o contexto global em que se insere o empreendimento, ou seja: a produção de gás natural tem por objetivo, principalmente, abastecer um complexo termelétrico”, diz o laudo. Não há evidências de que o Ipaam pediu um inventário de emissões, conforme a perícia.
A Eneva afirmou que já investiu mais de R$ 8 bilhões em projetos que contribuíram para a redução na intensidade das emissões de CO2.
“Esses projetos incluem o fechamento de ciclo de usinas termelétricas que passam a gerar mais energia sem queima adicional de gás natural; substituição do uso de diesel por gás no sistema de Roraima; implantação de parques solares; e a usina de liquefação de gás do Complexo Parnaíba (MA), que está viabilizando a substituição do óleo pesado nas operações de clientes industriais”, cita a nota da empresa.
Todos os dias, entre 20 e 30 caminhões carregados com gás cruzam as rodovias da região, segundo moradores de casas e comunidades vizinhas às estradas. O destino é Roraima, principal consumidor do combustível produzido, que abastece a usina termelétrica que garante o fornecimento de energia em parte do estado vizinho ao Amazonas.
A perícia identificou indícios de fracionamento do licenciamento, em vez de uma análise conjunta, que permitisse mensurar os impactos ambientais como um todo. Os peritos identificaram 41 processos de licenciamento no Ipaam referentes ao empreendimento da Eneva no Amazonas. Eles defendem que o licenciamento ocorra na esfera federal, a cargo do Ibama.
O empreendimento segue a lei e os parâmetros definidos pelos órgãos ambientais, afirmou a Eneva. “A lei número 3.785/2012 define que os empreendimentos sejam licenciados separadamente. Portanto, não há fracionamento do licenciamento, e sim cumprimento do disposto na legislação ambiental vigente.”
Os técnicos do MPF pedem que Eneva e Ipaam expliquem sobre a permanência ou não de trechos de oleodutos no projeto. Se o projeto prevê esses oleodutos, deve ser apresentado um estudo de dispersão de óleo.
Também deve haver explicação, conforme a perícia, sobre eventual contaminação de água superficial e subterrânea na área do rio Urubu. Se a contaminação existe, devem ser informados dados sobre extensão, duração, mitigação e revisão da matriz de impactos.
Segundo a perícia, os estudos ambientais indicam que a captação de água e o descarte de efluentes de três termelétricas ocorrerá em um mesmo local no rio Urubu.
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