Amazonas
Expedição científica vai investigar a fauna nas margens do rio Jutaí, no Amazonas
Grupo liderado por professor da USP vai coletar mamíferos, répteis e anfíbios de uma região pouco estudada da floresta durante o mês de julho.

Uma equipe de nove biólogos vai passar o mês de julho navegando por uma das regiões mais remotas e menos pesquisadas da Amazônia. O objetivo é investigar a biodiversidade de mamíferos, répteis e anfíbios que vivem às margens do Jutaí, um rio de águas turvas que serpenteia por centenas de quilômetros de floresta no oeste do Estado do Amazonas. “É um rio que está numa região muito biodiversa da Amazônia e para o qual temos pouquíssimas informações científicas disponíveis”, justifica o professor Alexandre Percequillo, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo em Piracicaba, que vai liderar a expedição.
Os pesquisadores vão passar três semanas percorrendo o rio e fazendo incursões na mata para prospectar a fauna ao longo de suas margens. A equipe deve partir de Manaus na noite desta terça-feira (1º de julho), a bordo de um barco recreio (típico da Amazônia), que servirá como dormitório, base de operações e laboratório flutuante da expedição. De lá, serão quatro a cinco dias de viagem pelas águas pardas do Rio Solimões até o município de Jutaí, 750 quilômetros a oeste (em linha reta). Considerando todas as curvas dessa estrada fluvial, será uma viagem de quase mil quilômetros — a distância entre São Paulo e Brasília.
A partir de Jutaí, a equipe planeja viajar mais algumas dezenas de quilômetros rio acima. Os pontos de coleta serão selecionados no decorrer do percurso, de acordo com as condições logísticas e ambientais locais. Os cientistas têm autorização para capturar diversos tipos de mamíferos, répteis e anfíbios; mas o foco principal será a coleta de ratinhos, catitas, preás, esquilos e outros pequenos roedores da fauna amazônica, que são o tema central do projeto de pesquisa que norteia o trabalho. As duas primeiras semanas da expedição serão acompanhadas pelo jornal da USP.
Viajar até tão longe para pesquisar ratinhos selvagens pode parecer algo de menor importância — comparado ao estudo de onças, harpias e outros animais de grande porte, por exemplo —, mas o fato é que os roedores são uma peça fundamental dos ecossistemas e da história evolutiva da biodiversidade amazônica. Cerca de um terço de todas a espécies de mamíferos conhecidas do planeta são roedores, segundo Percequillo. “Do ponto de vista evolutivo e ecológico, é o grupo (de mamíferos) mais bem-sucedido do planeta”, diz o pesquisador, que é especialista nesses animais e coordena o Laboratório de Mamíferos (LMUSP) da Esalq.
Diferentemente do que ocorre com os ratos e camundongos urbanos, os roedores silvestres não são pragas indesejadas. Pelo contrário, são uma fonte primária de alimento para boa parte dos predadores da floresta, desde cobras e lagartos até felinos e aves de rapina. Ou seja, estão na base da cadeia alimentar onívora e carnívora da Amazônia, além de atuarem no controle e na dispersão de espécies vegetais. “Do ponto de vista ecológico, é um grupo que sustenta uma diversidade enorme de outros organismos”, destaca Percequillo.
Na Amazônia, especificamente, cerca de um quarto (114) das 467 espécies de mamíferos conhecidas são de roedores, das quais dois terços (73) são espécies endêmicas — ou seja, que só existem na Amazônia, segundo números da lista de espécies da Sociedade Brasileira de Mastozoologia (SBMZ). É provável que esses números aumentem bastante ainda, à medida que mais pesquisas são realizadas e novas áreas de floresta são inventariadas pelos cientistas.
O objetivo científico do projeto, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), é justamente ampliar o conhecimento sobre a diversidade de roedores da fauna brasileira e entender como essas espécies estão distribuídas pelo território nacional (com foco em três famílias: Sciuridae, Cricetidae e Echimyidae), além de desvendar suas histórias evolutivas e as relações de parentesco entre elas. Numa região do tamanho da Amazônia e com a biodiversidade da Amazônia, isso é um desafio gigantesco, que exige muito trabalho de campo para ser resolvido.
O primeiro passo é documentar o que existe dentro da floresta. O método científico empregado há centenas de anos para isso é baseado na coleta e na descrição de espécimes, que são capturados na natureza e depositados em coleções biológicas mantidas por museus, universidades e outras instituições de pesquisa ao redor do mundo. Essas coleções são a base da pirâmide do conhecimento científico que, aliado ao conhecimento dos povos tradicionais, permite vislumbrar e dimensionar a diversidade da vida na Terra. É com base nelas que os cientistas conseguem estimar quantas espécies existem, como essas espécies estão distribuídas pelo planeta, quão abundantes (ou raras) elas são e, consequentemente, onde é preciso atuar para garantir a sobrevivência delas.
“As coletas vão nos permitir descobrir coisas novas e conhecer melhor as espécies que já são descritas”, explica Percequillo, um veterano de muitas expedições fluviais pela Amazônia. Tão importante quanto descrever novas espécies, segundo ele, é mapear a distribuição e a diversidade de linhagens evolutivas que existem dentro de cada espécie — algo que só é possível fazer por intermédio das coleções biológicas, que permitem a realização de estudos detalhados sobre a variabilidade morfológica e genética de diferentes populações de animais.
Todas as coleções de mamíferos do Brasil possuem, juntas, cerca de 370 mil espécimes (amostras de animais individuais) preservados, segundo Percequillo. Parece muito, mas é pouco, proporcionalmente ao tamanho do território e da diversidade de espécies e ecossistemas que existem no Brasil, diz ele. Só o Instituto Smithsonian, nos Estados Unidos, comparativamente, tem uma coleção de quase 600 mil espécimes de mamíferos do mundo todo.
“Ainda temos uma quantidade pequena de espécimes por espécie”, destaca Percequillo. Além disso, muitas regiões da Amazônia permanecem pouco amostradas ou totalmente desconhecidas da ciência. Ao contrário da impressão que se pode ter ao olhar para uma imagem de satélite, ou mesmo da janela de um avião, o bioma amazônico não é um grande “tapete verde” de floresta homogênea, mas um gigantesco mosaico de ecossistemas fluviais, lacustres, florestais e montanos em que a biodiversidade pode variar muito de um lugar para outro. Mesmo rios vizinhos podem abrigar conjuntos de ambientes e espécies bastante distintos.
No caso do Rio Jutaí, os pesquisadores preveem encontrar um misto de espécies típicas do Rio Juruá, ao leste, e do Rio Javari, a oeste (que marca a divisa do Brasil com o Peru); além de eventuais espécies novas e endêmicas. “Toda vez que nós vamos a campo nós voltamos com informações novas e importantes”, comemora Percequillo. Segundo ele, não há nenhum material representativo da fauna de mamíferos do Jutaí depositado nas principais coleções do Brasil. “O potencial de descobertas é muito grande.”
Nos últimos dois anos o projeto já realizou expedições ao Rio Branco, em Roraima, e ao Rio Purus, no sul do Amazonas. Além do foco em roedores e outros mamíferos terrestres, o grupo inclui especialistas em morcegos, répteis e anfíbios. Além da USP, a equipe conta com cientistas vinculados à Fiocruz e às Universidades Federais do Rio de Janeiro (UFRJ), do Espírito Santo (Ufes) e de Lavras (Ufla), em Minas Gerais.
Imensidão amazônica
O município de Jutaí, que abriga o rio homônimo, tem 69,5 mil quilômetros quadrados, uma área do tamanho da Irlanda e maior do que a de vários Estados brasileiros, incluindo Sergipe, Alagoas, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraíba e Rio Grande do Norte. A maior parte dele, coberta de floresta primária. A população é de pouco mais de 25 mil pessoas, distribuídas entre a sede do município — localizada na “esquina” do Rio Jutaí com o Solimões — e dezenas de comunidades ribeirinhas, que vivem da pesca, do extrativismo e da agricultura de pequena escala.
A parte baixa do rio (próxima à foz) é flanqueada por um mosaico de áreas protegidas, incluindo unidades de conservação e terras indígenas, que conferem proteção legal às florestas adjacentes. Cerca de 70 quilômetros rio acima de Jutaí estão a Estação Ecológica (Esec) de Jutaí-Solimões, na margem oeste, criada em 1983; e a Reserva Extrativista (Resex) do Rio Jutaí, na margem leste, criada em 2002, ambas geridas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) do governo federal. Já as terras indígenas são geridas pelos seus respectivos povos tradicionais, com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
O Plano de Manejo da Resex do Rio Jutaí, publicado em 2011, já chamava a atenção para a escassez de informações científicas e a “necessidade urgente” da realização de estudos sobre a fauna da região, tanto terrestre quanto aquática. “Existem apenas dados de entrevistas nas comunidades sobre as principais fontes de proteína de origem silvestre”, que incluíam paca, queixada, anta, cutia, macacos e diversos tipos de peixes, segundo o documento.
O ICMBio, então, firmou uma parceria com o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, com sede em Tefé, para a realização de estudos sobre a diversidade biológica, social e cultural das duas unidades. O instituto realizou algumas expedições na região em 2014 e 2015, que produziram os primeiros — e aparentemente únicos, até hoje — levantamentos científicos sobre a fauna do Jutaí. Os resultados publicados em revistas científicas incluem o registro de dezenas de espécies de macacos e morcegos.
No trecho que será navegado, o Jutaí é um rio de coloração barrenta — ou de “água branca”, como se diz na Amazônia —, o que significa que sua água é rica em sedimentos e minerais de origem andina. Esses sedimentos são ricos em nutrientes, que fertilizam as várzeas dos rios e ajudam a produzir uma diversidade ainda maior de flora e fauna.
O rio inteiro, incluindo todos os seus meandros, tem 1.230 quilômetros de extensão, segundo dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Sua nascente está mais de 500 quilômetros a sudoeste da sua foz, numa região ultrarremota do Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, famosa por abrigar povos indígenas isolados (que nunca tiveram contato com o homem branco), e por ter sido palco de um dos crimes de maior repercussão da história da Amazônia: o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, em junho de 2022.
Assim como tantos outros rios da Amazônia, o Jutaí também sofre com o problema da extração ilegal de ouro, que provoca problemas gravíssimos de degradação e contaminação ambiental. Em 2019, uma grande operação (chamada Operação Korubo) envolvendo diversas autoridades (PF, Ibama, Funai, MPF e Exército) resultou na destruição de mais de 50 balsas de garimpo ilegal nas partes mais altas do rio, dentro da Terra Indígena Vale do Javari.
Não deixe de curtir nossa página no Facebook, siga no Instagram e também no X.

Faça um comentário