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Brasil

Por medo do coronavírus, indígenas negam entrada da Funai em aldeia para liberar linhão Manaus-Boa Vista

O presidente da Associação Comunidade Waimiri Atroari, Mario Parwe Atroari, deixa claro que seu povo não abrirá mão do isolamento social.

O site do jornal O Estado de S. Paulo (Estadão) informou que, no dia 29 de junho, quando o Brasil se aproximava de 60 mil mortos pela covid-19 e já ultrapassava 1,3 milhão de pessoas infectadas pelo coronavírus, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Marcelo Xavier, mandou uma carta para os índios Waimiri Atroari, de Roraima, em que afirmou que compreendia a necessidade de isolamento imposta pela doença, mas que não dava mais para esperar o surto passar e que sua equipe tinha de entrar na terra indígena.

Segundo o jornal, o presidente da Funai, ainda sem saber que, apenas nove dias depois, contrairia covid-19, argumentou aos índios Waimiri Atroari que suas lideranças tinham que permitir a entrada de funcionários nas aldeias para dar continuidade ao licenciamento ambiental da linha de energia que pretende ligar Manaus (AM) a Boa Vista (RR).

Seu objetivo era enviar tradutores do estudo de impacto ambiental para dentro da terra indígena, para que o material fosse traduzido para o “kinja iara” (língua de gente), a língua dos Waimiri. Roraima é hoje o único Estado do Brasil que não está conectado ao sistema interligado de transmissão de energia, e o presidente Jair Bolsonaro cobra a liberação desde que entrou no Palácio do Planalto.

Na carta de uma página à qual o Estadão teve acesso, o presidente da Funai admite que “a intenção inicial era de que se aguardasse o fim da pandemia para dar início aos trabalhos de tradução”. No entanto, prossegue, “deve-se levar em consideração que, diante da incerteza do prazo para o fim da pandemia, estamos buscando novas alternativas para podermos dar continuidade aos trabalhos”.

Marcelo Xavier argumentou que seus funcionários tomariam medidas de segurança para evitar o contágio, mas aproveitou para destacar que a ausência da linha, conforme apontado pelo governo em um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), custava R$ 133 milhões por mês ao consumidor de energia de todo o País, porque Roraima tinha de ser iluminada com usinas térmicas locais, movidas a óleo, que são mais caras.

“Desse modo, quando findada essa pandemia que assola todo o País, todo o material necessário para análise já estará traduzido”, afirmou Xavier, no documento.

A resposta dos Waimiri Atroari, povo que reúne cerca de 2,1 mil indígenas, chegou no dia 24 de julho, com um retumbante “não”. Na carta, também obtida pela reportagem, o presidente da Associação Comunidade Waimiri Atroari, Mario Parwe Atroari, deixa claro que seu povo não abrirá mão do isolamento social. “Não vemos novas alternativas eficientes que impeçam
essa doença de chegar à terra indígena Waimiri Atroari, senão o isolamento social e respeito à quarentena”, afirma.

Ele responde ao presidente da Funai que as cidades que fazem limite com a terra indígena somavam mais de mil contaminações naquele momento, mas que o vírus ainda não tinham sido confirmado em nenhum indígena de suas aldeias, devido à adoção rígida do isolamento.

Os indígenas lembram ainda que o próprio presidente da Funai, que pede para funcionários entrarem em suas terras, havia sido contagiado pelo vírus. “Chegou até nós a notícia que o senhor e outros membros de sua equipe da Funai foram contagiados pela covid-19, mesmo com todos os cuidados que sabemos que o senhor toma. Como o senhor mesmo agora pode ver, essa
doença é perigosa e, para gente, ela é muito mais ainda.”

Ao comentarem os prejuízos financeiros mencionados pelo presidente da Funai, os Waimiri afirmaram que Marcelo Xavier teve a preocupação de destacar a necessidade de “garantir o abastecimento do mercado de energia em Roraima, com segurança, eficiência e sustentabilidade”, mas deixou de mencionar “a preocupação com a saúde do nosso povo”. “É como se não existíssemos!”, afirmam os índios.

Na rejeição do pedido, os Waimiri relembram fases catastróficas vividas por seu povo na década de 1970, durante a abertura da BR-174, em Roraima, quando muitos morreram por causa de um surto de sarampo, e afirmam que a decisão de suspender a entrada de pessoal de fora nas áreas foi tomada em 16 de março, baseada em determinação médica. A decisão deverá prosseguir por, pelo menos, mais 60 dias.

Questionada pela reportagem, a Funai declarou, por meio de nota, que “pediu ao povo Waimiri Atroari para dar continuidade ao protocolo de consulta, respeitando todas as medidas de segurança para que não houvesse riscos à comunidade e o processo fosse continuado, tendo em vista o isolamento energético do estado de Roraima, que já perdura por muitos anos”.

A Funai afirmou que “está atendendo a todos os protocolos de consulta sem colocar os indígenas em situação de risco e buscando não interromper o diálogo com a etnia”. “A fundação esclarece ainda que o empreendedor (Transnorte Energia) se dispôs a qualquer alternativa necessária para
proporcionar a logística segura dos tradutores. A intenção é realizar a tradução do Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA-CI), para posterior distribuição do documento a todo o povo Waimiri Atroari.”

Histórico

Cerca de 125 quilômetros (km) do linhão previsto para ser erguido ao lado da BR-174 passam dentro da terra indígena. Por trás da motivação de Marcelo Xavier para retomar os estudos presenciais em plena pandemia está a pressão total do governo sobre esse projeto. Bolsonaro já cobrou a liberação das obras diversas vezes e o ministro de Minas Energia, Bento Albuquerque, declarou em inúmeras ocasiões que a obra iria começar, o que não teve autorização até hoje.

Leiloada em setembro de 2011, a linha de transmissão Manaus-Boa Vista tinha prazo de três anos para ficar pronta, com entrada em operação prevista para janeiro de 2015. O impasse sobre a questão indígena, no entanto, paralisou o empreendimento, que corta a terra demarcada dos Waimiri.

Do total de 721 km do traçado previsto para ser erguido ao lado da BR-174, rodovia que liga as duas capitais, 125 km passam dentro da terra indígena, onde vivem mais de 2,1 mil índios em 56 aldeias.

Os povos indígenas não são contra o projeto, mas exigem que sejam consultados e que tenham seus pedidos atendidos por causa dos impactos ambientais. Na fase atual, eles aguardam a tradução do estudo de impacto ambiental para dar prosseguimento à execução do projeto.

Em julho do ano passado, reportagem do Estadão revelou que a concessionária Transnorte Energia, que venceu o leilão da linha, chegou a apresentar um pacote de indenizações ao povo kinja, como são conhecidos os indígenas Waimiri Atroari, no valor total de R$ 49,635 milhões.

No estudo, a empresa afirmava que tinha identificado 37 impactos da obra nas terras indígenas. Havia ainda outros 27 impactos considerados irreversíveis, com reflexo constante à população indígena. Não houve avanço, porém, para a conclusão do processo. O parecer definitivo do presidente da Funai sobre o licenciamento só ocorrerá depois da consulta às comunidades
indígenas.

Contaminações

Dados coletados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) mostram que, até esta quarta-feira, 5, já foram confirmadas 633 mortes de indígenas pela covid-19 em todo o País, além de 22.325 casos de contaminações, com 148 povos afetados. Na maioria dos casos, segundo a Apib, as contaminações ocorreram quando equipes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, acessaram as terras.

“Estamos enfrentando o descaso do Estado, lutando pelo direito de viver enquanto socorremos os contaminados e celebramos o legado daqueles que não sobreviveram ao novo coronavírus”, afirma a instituição.


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