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Papa muda Código de Direito Canônico para criminalizar abuso sexual cometido por clérigos

As denúncias passam a ser obrigatórias para evitar acobertamentos. A punição pode ser a demissão do estado clerical.

O papa Francisco determinou que as regras valem a partir de dezembro de 2021.(Foto:Reprodução/Internet)

O papa Francisco determinou que, a partir de dezembro de 2021, o abuso sexual cometido por clérigos contra adultos também deva ser tipificado e criminalizado. A diretriz define, ainda, que bispos e superiores religiosos possam ser responsabilizados por omissão ou negligência, entre outras mudanças. As denúncias passam a ser obrigatórias para evitar acobertamentos. A punição pode ser a demissão do estado clerical. A informação é do UOL.

“Os crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis. Para que tais fenômenos, em todas as suas formas, não aconteçam mais, é necessária uma conversão contínua e profunda dos corações, atestada por ações concretas e eficazes que envolvam a todos na Igreja, de modo que a santidade pessoal e o empenho moral possam concorrer para fomentar a plena credibilidade do anúncio evangélico e a eficácia da missão da Igreja”, diz a carta apostólica sob forma de motu próprio “Vos estis lux mundi”, assinada pelo papa Francisco.

Documentário “Nosso Pai”

Em reportagem publicada ontem, o UOL revelou que o padre Ernani Maia dos Reis, líder do mosteiro Santíssima Trindade, localizado em Monte Sião (MG), é acusado de assediar e violentar sexualmente oito monges, durante os anos de 2011 e 2018. Ele nega a acusação. A apuração do núcleo investigativo também resultou no documentário “Nosso Pai”, lançado pelo MOV, selo de produções audiovisuais do UOL.

A arquidiocese de Pouso Alegre (MG), à qual o religioso estava submetido, afirma que a igreja não se omitiu na questão. O próprio padre pediu afastamento do mosteiro em agosto de 2018, após os primeiros relatos de abusos chegarem ao conhecimento de uma investigação interna da Igreja Católica. Ele mora, atualmente, na cidade de Franca (SP), onde exerce a profissão de psicanalista.

Medida vale a partir de dezembro

A nova disposição passa a valer a partir de dezembro de 2021, após 14 anos de estudos. O Código de Direito Canônico previa como delito apenas casos envolvendo crianças e adolescentes. Vale lembrar que crimes sexuais contra adultos já estão previstos no Código Penal brasileiro, a exemplo de violência sexual mediante fraude (artigo 215) e assédio sexual (artigo 216A).

O caso McCarrick

O escândalo mais recente de uma alta autoridade da Igreja Católica envolvida em abusos sexuais de adultos é o caso do ex-cardeal e ex-arcebispo de Washington Theodore McCarrick, que se tornou público em 2018, quando renunciou ao cardinalato e as investigações começaram. A Cúria Romana o considerou culpado em fevereiro de 2019. Ele recebeu a pena de demissão do estado clerical, deixando de ser membro do clero católico e passando à condição de leigo.

Foi o mais alto clérigo católico a ser laicizado nos tempos modernos e a primeira vez na história da Igreja Católica que um cardeal perdeu o título por abusos sexuais. A história foi revelada pelo jornal The New York Times em 2018. A reportagem obteve evidências de que um seminarista adulto foi abusado em 1994, relatou ao superior, que avisou o núncio papal, Gabriel Montalvo Higuera, e a informação chegou ao papa João Paulo 2º. O papa Bento 16 também foi advertido de que os abusos aconteceram por décadas.

Escândalo em Boston

O marco mais importante relacionado a abusos sexuais cometidos por membros do clero da Igreja Católica aconteceu em 2002 e foi revelado pelo núcleo investigativo do jornal The Boston Globe, o Spotlight. A equipe de jornalistas descobriu que o arcebispo de Boston, Cardeal Law, sabia que o padre John Georghan abusava sexualmente de crianças por décadas e nada fez a respeito. A investigação avançou e listou 87 padres que cometeram violações. O cardeal estava ciente de todos esses casos. Após a publicação do escândalo, outros casos vieram à tona nos Estados Unidos e em outros países.

“O escândalo continua se espalhando até hoje, não vai parar tão cedo. Talvez nunca acabe. É um problema sistêmico”, afirma o repórter investigativo Michael Rezendes em entrevista ao UOL. Rezendes trabalhou na reportagem que recebeu o Prêmio Pulitzer de Serviço Público em 2003 por sua investigação. Depois do primeiro bloco de reportagens, ele trabalhou em outras denúncias de violações sexuais de padres e clérigos da igreja. Atualmente, é repórter investigativo na agência de notícias Associated Press.

“O impacto mais positivo que tivemos foi o efeito libertador para dezenas de milhares de vítimas do mundo inteiro. Estavam sofrendo em silêncio, se sentiam responsáveis de alguma forma. Quando publicamos a reportagem, as vítimas perceberam que não estavam sozinhas, que não tinham culpa.” Rezendes é coautor do livro “Traição: A Crise na Igreja Católica” e um dos autores de “Pecado contra os Inocentes: Abuso Sexual de Padres e o Papel da Igreja Católica”. “O jornalismo é fundamental em revelar histórias como essas. Se não fosse pelo jornalismo, esses casos não viriam a público, continuariam sendo um segredo gigantesco e abominável. E essas dezenas de milhares de pessoas continuariam sofrendo em silêncio.”

A denúncia publicada pelo Boston Globe fez com que a Justiça americana tomasse atitudes mais incisivas em relação à igreja. Por isso, passou a exigir indenizações. Igreja Católica não age com transparência em casos de abusos sexuais, afirma jornalista Mike Rezendes

Segundo o site Bishop Accountability, especializado em documentar abusos da Igreja Católica nos Estados Unidos, de 1986 a 2011 a instituição americana pagou, em acordos ou em juízo, quase US$ 2,5 bilhões (cerca de R$ 13,6 bilhões) às vítimas de pedofilia de seu clero. Entre 2004 e 2020, 29 dioceses católicas americanas declararam falência causada por essas indenizações.

Mas, nesses 20 anos, muito pouco mudou em relação ao acobertamento praticado pelas instâncias da Igreja Católica responsáveis pelos membros do clero. Até hoje é difícil ter acesso aos documentos e processos da igreja relacionados a casos de abuso, já que o Vaticano controla todo o processo. “Eu acho que praticamente em todos os casos, em todas as situações, no mundo inteiro, a igreja faz tudo o que pode para acobertar a responsabilidade pelo abuso, oculta documentos e não é transparente. Os documentos só se tornam públicos quando há intervenção judicial”, afirma Rezendes.

O jornalista critica a atitude do papa Francisco, que tem feito “bons discursos, pedido desculpas, mas que substancialmente não fez nada muito significativo para os sobreviventes”. “Muitos estão decepcionados com o que o papa Francisco de fato fez em contraposição com o que disse.” Rezendes diz que seria importante a participação de entidades externas que pudessem acompanhar e dar transparência aos casos de abuso sexual. Sem isso, seguem ocorrendo.

O caso Karadima

Na América Latina, o caso do padre Fernando Karadima é emblemático. Tornou-se conhecido também por meio de denúncias na imprensa. Em 2010, o jornal The New York Times publicou os relatos de duas vítimas do padre Karadima. Os periódicos chilenos La Tercera e The Clinic revelaram as denúncias em abril do mesmo ano. Dias depois, cinco vítimas contaram sobre os abusos sexuais e psicológicos sofridos na adolescência em um programa na Televisão Nacional do Chile. Para a Justiça, foi tarde demais. Apesar de ter sido considerado culpado, os crimes estavam prescritos. O Vaticano havia recebido a primeira denúncia em 2004.

Outros membros do clero sabiam do que ocorria e não levaram as denúncias adiante. Sete bispos chilenos renunciaram. Há evidências de que o padre cometia abusos desde 1955. Karadima foi expulso da igreja em 2018, pelo papa Francisco, depois de sete anos de investigação interna. “Além do simbólico, do reparador que pode ser para as pessoas que sofreram os abusos, tem um toque de esperança muito forte que estejam sendo criados ambientes mais seguros para os jovens e crianças e que estas coisas não passem ao futuro”, disse Juan Carlos Hermosilla, advogado das vítimas de Karadima. O ex-padre morreu em julho deste ano.


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