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Economia

Real brasileiro é moeda corrente em cidade da Venezuela

Em Santa Elena de Uairén, município com cerca de 55 mil habitantes no sul venezuelano, os comerciantes colocam os preços dos produtos em reais.

Santa Elena, cidade venezuelana na fronteira com o Brasil. (Foto:Jason R Nascimento/ Creative commons)

A desvalorização do bolívar como moeda nacional na Venezuela leva o país a adotar múltiplas divisas. Negócios são feitos em dólares, euros, pesos colombianos e até mesmo em reais. Em Santa Elena de Uairén, município com cerca de 55 mil habitantes no sul venezuelano, a moeda brasileira circula diariamente. A informação é da Agência RFI Brasil.

Há meses a população local não vê a rejeitada moeda venezuelana. “É uma situação única daqui. Os comerciantes colocam os preços em reais”, disse à RFI Brasil uma fonte que preferiu não se identificar.

Diversos fatores favorecem o uso do real na cidade, a começar pelo geográfico: Santa Elena está a 20 quilômetros do Brasil. Em apenas 30 minutos de carro, chega-se a Pacaraima, o primeiro município brasileiro após a fronteira com a Venezuela.

Nas ruas de Santa Elena, é comum escutar o português. Os primeiros brasileiros chegaram nesta cidade – fundada em 1929 – há pelo menos quatro décadas, atraídos pelos garimpos de ouro e de pedras preciosas.

Grande parte dos idosos de Santa Elena nasceram no Brasil e se recusam a voltar ao país natal. Mas, desde março do ano passado, não há representação diplomática do Brasil na Venezuela por retaliações políticas de Brasília a Caracas.

O economista Eduardo Semtei explica que “em países em processo de hiperinflação, a moeda local perde capacidade de transação e começa a ser substituído paulatinamente por moedas de maior uso em regiões limítrofes com outros países”. “Na fronteira com o Brasil a moeda deste país se transforma quase obrigatoriamente na moeda usada nas negociações”, observa.

“Aqui parece o Brasil”

“Aqui parece que a gente está no Brasil. Tudo é em real. A diarista, o jardineiro, as compras, a oferenda que damos na igreja. Tudo, absolutamente tudo é pago em reais”, explicou o morador do lugar, por telefone. Daniel, atendente do Bodegón 321, confirma que “aqui em Santa Elena de Uairén já não usamos bolívares”.

O uso do real na economia de Santa Elena ganhou força a partir de agosto de 2018, quando o Banco Central da Venezuela desvalorizou o bolívar em 95,8%. De lá para cá, as moedas estrangeiras, em especial o dólar americano, foram deixando o bolívar no escanteio.

Nos últimos dias, a cotação da moeda brasileira variou entre 308 mil e 320 mil bolívares por real. Já o dólar chegou a ser negociado a mais de 1.851.000 bolívares na quinta-feira (25), no paralelo. O bolívar, moeda batizada em homenagem a Simón Bolívar – o herói máximo da Venezuela –, já não é aceito pelos comerciantes de Santa Elena de Uairén. É comum ver notas do dinheiro venezuelano, algumas impressas entre 2019 e 2020, rasgadas e abandonadas pelas ruas de todo o país.

No débito ou no crédito?

Em meados de fevereiro deste ano, o Banco Central da Venezuela bloqueou o uso de cartões internacionais nos comércios venezuelanos. Mas o problema ainda não ocorre em Santa Elena, onde cartões de débito e de crédito de bandeiras brasileiras são aceitos. A reportagem questionou esta permissividade ao Banco Central venezuelano, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria.

Débito ou crédito?

“As pessoas com contas em bancos brasileiros e que têm cartões de crédito ou débito podem usá-los aqui como se estivessem no Brasil”, explicou o morador da cidade. De acordo com a Econométrica, empresa venezuelana de análise econômica, nos últimos sete anos a Venezuela perdeu cerca de 70% do tamanho de sua economia. Com isso, o país que já foi um dos mais prósperos do continente, em 2013 passou de um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 200 bilhões para cerca de U$ 52 bilhões em 2020. O valor do bolívar foi arrastado por essa queda econômica.

Para acompanhar a galopante inflação venezuelana, que em janeiro passado chegou a 55,2%, os estabelecimentos comerciais de Santa Elena cobram juros caso o pagamento seja parcelado. “No débito, não tem acréscimo, porém no crédito tem uma alta de 5% no preço”, detalha a fonte, que como muitos moradores do país, prefere manter o anonimato por temer algum tipo de represália.

Os preços vigentes em Santa Elena podem ser considerados caros, dependendo da cidade de referência. “Os aluguéis também são todos em reais. O preço de uma quitinete varia entre R$ 500 e 800, dependendo do lugar e se estiver mobiliada”, relata o morador, por telefone.

Pelas redes sociais, abundam as ofertas feitas por lojas virtuais com sede em Santa Elena de Uairén – como a promoção da “polarcita”, uma cerveja venezuelana vendida na promoção de três unidades por R$ 10.
A alimentação é o setor mais impactado pela inflação. Em janeiro deste ano, de acordo com o Centro de Documentação e Análise Social (CENDAS), o preço dos alimentos na Venezuela sofreu uma alta de cerca de 70%.“Aqui em Santa Elena, o quilo da carne varia de R$ 30 a 40, porém a carne e os legumes não vêm do Brasil. Mesmo sendo produzidos aqui na Venezuela, eles são cobrados em reais”, diz o morador.

Contrabando de gás e gasolina

Graças ao contrabando de produtos que chegam do Brasil através das “trochas”, os caminhos ilegais que permeiam as fronteiras, a cidade venezuelana se esquiva da escassez de gás doméstico e de gasolina que afetam boa parte do país. Por um botijão de gás, são cobrados R$ 160. Já a gasolina chega a custar R$ 10 reais o litro.
Nas cidades brasileiras que abastecem indiretamente e com os produtos ilegais que chegam a Santa Elena de Uairén, um botijão de gás pode custar R$110 e o litro da gasolina, cerca de R$ 5.

A fonte explica que “a gasolina e o gás vêm pelos ‘trocheros’, que passam até oito horas caminhando” para trazer os produtos nas costas (até Santa Elena). Por isso, valem tão caro. Desde março passado, o preço das mercadorias contrabandeadas do Brasil sofre ágio por causa das fronteiras fechadas para evitar a propagação da covid-19. Mas caso uma pessoa queira passar da Venezuela para o Brasil, ou vice-versa, é só pagar entre R$ 30 e 200 a um “trochero” para que ele leve a pessoa ao país de destino.

Apesar do alto custo de vida em Santa Elena de Uairén, outro morador do local conta aliviado que pelo menos lá não há o crônico problema que afeta boa parte da Venezuela: “Aqui tem muitos rios nas redondezas, então não sofremos com a falta de água. Isso, pelo menos, ameniza a nossa situação”.

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