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Governo ignora alerta sobre ‘ambiente propício a desvios’ em regra para ONGs

Norma alterada deixa de exigir devolução de bens em caso de mau uso dos recursos; parecer apontou riscos, mas Planejamento diz que restituição ‘nem sempre’ atende ao interesse público.

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O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ignorou um parecer da consultoria jurídica do Ministério do Planejamento e Orçamento com alertas sobre os riscos de o Executivo mudar as regras para repasse de verbas públicas a Organizações Não Governamentais (ONGs). O documento técnico indicou que as alterações podem prejudicar a recuperação de dinheiro desviado, “contrariando os princípios constitucionais da eficiência, moralidade, publicidade e economicidade que devem nortear toda a atuação administrativa”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

A alteração nas normas para repasses a ONGs foi incluída na proposta de diretrizes do Orçamento para 2026, elaborada pelo Executivo e enviada para análise do Congresso Nacional, onde deve ser apreciada até o dia 17 de julho.

Conforme a nova regra, o governo deixará de exigir a devolução de bens em caso de desvio dos recursos repassados a ONGs. A mudança, colocada no chamado Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) 2026, foi revelada pelo Estadão e ocorre no momento em que o governo bate recordes de envio de dinheiro para essas organizações.

Por meio do Ministério do Planejamento, o governo federal afirma que nem sempre é interessante à União a devolução de bens em casos de irregularidades e alega que existem outros instrumentos legais que podem ser adotados para reparar danos ao erário.

Entretanto, um parecer técnico da consultoria jurídica do Planejamento apontou para outro cenário.

A chamada “cláusula de reversão patrimonial”, ativada nos casos de irregularidades na aplicação dos recursos ou desvios de finalidade, foi descrita como uma “garantia real em favor do poder público, assegurando que os bens adquiridos com recursos públicos retornem ao patrimônio estatal em caso de desvio de finalidade”.

O documento é assinado pelo advogado da União Edilson Pereira de Oliveira Filho, coordenador de Assuntos Legislativos da Consultoria Jurídica do Ministério do Planejamento.

Entretanto, a Secretaria de Orçamento Federal, vinculada à mesma pasta, optou por enviar o projeto de lei ao Congresso sem a cláusula de devolução dos bens.

O debate técnico dentro do governo sobre a devolução dos bens foi travado no contexto de desburocratizar o recebimento de recursos por alguns tipos de ONGs, como as de catadores de materiais recicláveis. Originalmente, a proposta de diretrizes as dispensaria de apresentar certidões negativas, de demonstrar capacidade técnica e de terem de devolver bens em casos de irregularidades.

“O conjunto dessas dispensas, embora aparentemente voltado a facilitar o acesso a recursos por entidades que atuam com populações vulneráveis, acaba por criar um ambiente propício a desvios, ineficiências e malversações, contrariando os princípios constitucionais da eficiência, moralidade, publicidade e economicidade que devem nortear toda a atuação administrativa”, dizia o parecer.

A versão final do projeto da LDO manteve expressa a obrigação de apresentação de certidões negativas para todas as ONGs e a obrigação de comprovação de capacidade técnica. No entanto, o dispositivo que tratava da reversão patrimonial não foi incluído na última versão enviada ao Congresso, embora seja classificado por técnicos como “já tradicional”. Levantamento do Estadão indica que é a primeira vez que este item não consta na LDO pelo menos desde 2015.

Antes da análise coletiva pelos deputados, técnicos da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara já se debruçaram sobre o texto. A função desses servidores é assessorar os parlamentares para que eles tenham embasamento técnico na tomada de decisões.

Um dos pontos criticados por eles é a supressão da regra de devolver bens. Em parecer técnico, os consultores afirmam que a mudança representa fragilização dos mecanismos de proteção ao patrimônio público. Trata-se, na visão dos analistas, de medida que compromete a fiscalização e o controle sobre o uso desses bens após o encerramento dos convênios porque a cláusula de reversão é uma exigência básica de boa governança.

“Elimina-se desnecessária e injustificadamente uma ferramenta de proteção do patrimônio público em um contexto de extrema dificuldade operacional (transferências dispersas em favor dos beneficiários), sem oferecer qualquer alternativa que, direta ou indiretamente, represente meio mais eficaz de materializar a exigência constitucional de garantia da boa e regular guarda e aplicação dos recursos públicos”, destacou o relatório.

A consultoria técnica pontuou ainda que a versão atual da PLDO 2026 substituiu a cláusula de reversão por uma
norma genérica que trata da destinação dos bens remanescentes “conforme legislação específica”. Para a consultoria, essa substituição abre margem para interpretações frouxas que fragilizam mecanismos de controle e fiscalização.

“Ao não prever a reversão, o texto deixa espaço para a doação automática desses bens aos beneficiários finais, sem obrigatoriedade de controle ou verificação da finalidade, contrariando princípios constitucionais que regem a gestão dos recursos públicos”, afirmou o parecer.

O Ministério do Planejamento foi procurado para esclarecer qual entendimento prevaleceu sobre a devolução de bens após o relatório da consultoria jurídica da pasta e por que a cláusula não foi mantida após anos expressa nas LDOs. Em nota, minimizou a exclusão e disse que em alguns casos a devolução não é interessante à coletividade porque gera obrigações.

“Na legislação e nos respectivos instrumentos de transferências já existem regras específicas que regem a destinação dos bens remanescentes, que modulam os casos nos quais há determinação da devolução dos recursos em caso de rejeição da prestação de contas, pois a reversão patrimonial e eventual devolução dos bens nem sempre irão ao encontro do interesse público, gerando obrigações para a administração que muitas vezes não teria destinação adequada para aqueles bens”, informou.

Deputados da oposição afirmam que a cláusula pode ser incluída novamente no projeto da LDO quando ela for apreciada pelo Congresso.


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