Amazonas
‘Todas as vozes devem ser ouvidas’, afirma arcebispo de Manaus que está no conclave
Defensor do meio ambiente, arcebispo de Manaus, Dom Leonardo Ulrich Steiner, acredita que futuro pontífice continuará abertura iniciada por Francisco.

Em Roma, para onde foi participar do funeral do papa Francisco e da escolha de seu sucessor, o cardeal arcebispo de Manaus, Dom Leonardo Ulrich Steiner, avalia que é difícil definir um perfil para o próximo papa, pois o pontífice “não conduz sozinho a Igreja”. “No Vaticano há muitas pessoas junto com ele, o assessorando e o aconselhando”, diz. “O bispo de Roma acaba sendo moldado pelas necessidades. É claro que ele leva o seu jeito, mas a Igreja vai forjando o papa de que precisa.”
Pela primeira vez em um conclave, reunião dos cardeais para a escolha do papa, Dom Leonardo, que é franciscano, diz que não se preparou para a ocasião, “vou vivendo a experiência”. E descarta a possibilidade de ser o eleito, como aventou o teólogo Leonardo Boff em recente postagem no X: “Não tem perigo nenhum disso acontecer! Fique tranquilo!”.
Sobre as propostas de abertura da Igreja iniciada por Francisco, como ordenação diaconal de mulheres e padres casados, o cardeal afirma que continuarão os debates. Ele concorda que há vozes “muitas vezes duras” contra as iniciativas de Francisco, porém diz que as opiniões “devem ser ouvidas, o tempo de calar passou”.
Primeiro cardeal da Amazônia, Dom Leonardo afirma que a região sempre esteve “no coração e nas prioridades” de Francisco. O Sínodo da Amazônia, encontro que debateu os desafios da população e da evangelização local, é prova disso. Para o cardeal, o papa Francisco abriu uma porta de diálogo e conscientização dos católicos sobre a crise climática. Ele fez um aceno de acolhida à população LGBTQIA+, que “precisam ser ouvidas” e ajudadas, são pessoas que têm sonhos e vontade de “seguir Jesus e viver o Evangelho”. A seguir, trechos da entrevista divulgada no site Valor Econômico.
Valor:Qual o grande legado que o pontificado do papa Francisco deixa à Igreja e à sociedade?
Dom Leonardo Ulrich Steiner: É a recordação da importância da misericórdia. Quase não temos falado disso, mas, em 2016, vivemos o “Ano da Misericórdia” promulgado pelo papa. A partir da misericórdia, Francisco nos recordou a atenção aos pobres, a sinodalidade, a urgência do cuidado ao meio ambiente. Por meio dessa virtude também fomos nos percebendo uma igreja inserida na sociedade, mais atenta às necessidades e às mudanças atuais.
Valor: O papa Francisco dizia que a Igreja deve ser como um hospital de campanha, que acolhe todos os feridos e os sofredores.
Dom Leonardo: Ele usou essa expressão várias vezes e fez o possível para torná-la realidade. Não podemos esquecer que sua primeira viagem foi a Lampedusa, extremo sul da Itália, onde chegam os imigrantes africanos. Essa preocupação do papa em sermos uma igreja que vai ao encontro das pessoas mais necessitadas é, justamente, para que seja visibilizado para elas o modo de ser de Deus, que é misericórdia.
Valor:Quais os impactos mais significativos da “Laudato Si” nesses dez anos, nas instâncias políticas, na Igreja e na sociedade?
Dom Leonardo: Provavelmente, a encíclica “Laudato Si” tem sua semente plantada na Conferência Episcopal Latino-americana de Aparecida, em 2007. Nesse encontro, houve uma acentuação muito importante em torno da Amazônia. Estive na delegação da Santa Sé na COP de Paris e foi impressionante a importância que teve o documento nesse encontro. Por esse texto, conseguimos dar visibilidade à questão do meio ambiente e chegar a consensos significativos que viabilizaram o Acordo de Paris. Mundialmente, a “Laudato Si” ajudou, aos poucos, a mudar a compreensão e a relação que nós temos com a natureza. No fundo, podemos resumir a “Laudato Si” em duas palavras: cuidado e cultivo, em contraposição à dominação e destruição. Além disso, há a relação do meio ambiente e os pobres, que são os que mais sofrem com toda essa destruição. Há governos contrários à proposta do papa, pois continuam achando que a Terra é inesgotável. As mudanças climáticas mostram que esse pensamento está equivocado.
Valor: O que acha dos países que estão saindo do Acordo de Paris?
Dom Leonardo: Nesse caso, existe uma questão econômica, em que não interessam os outros – e, muito menos, os pobres. Somente há preocupação com o lucro e a riqueza pessoal. Aí há um jogo político difícil de ser superado e a “Laudato Si” toca nesse aspecto também. Especificamente, sair do Acordo de Paris significa “olha, o mundo que se dane, desde que eu tenha o que é meu”.
Valor: Os mais empobrecidos e excluídos continuarão ocupando um lugar central na missão da Igreja nos próximos anos?
Dom Leonardo: Os pobres sempre ocuparão o lugar central na Igreja, porque foram os preferidos de Jesus. Ele foi ao encontro dos pobres materiais e espirituais, como os fariseus. Jesus discutiu sem medo com os fariseus, que não entenderam sua mensagem de amor e compreensão. Os pobres sempre terão o espaço necessário no ambiente eclesial, pois se nós saímos do horizonte dos pobres, sairemos consequentemente do horizonte da Cruz. Sem a compreensão da dor do irmão, não perceberemos que participamos de um mesmo mistério de amor. Hoje, temos tanta solidariedade e sensibilidade para com os pobres. Não apenas da parte dos bispos, pois o povo de Deus tem nos ensinado um cuidado enorme em relação aos pobres e não se resume em dar comida ou esmola, mas se trata de reconhecer a dignidade das pessoas excluídas e sofredoras. Fico sempre muito admirado e agradecido de termos tantas pessoas que nos ajudam a não esquecermos daquilo que nós bispos na América Latina chamamos de opção preferencial pelos pobres.
Papa Francisco sempre foi uma presença muito forte para nós aqui da Amazônia”
Valor:Durante a pandemia de covid-19, Manaus viveu momentos difíceis, como alto índice de mortes, e o senhor recebeu a ligação direta do papa. O que significou esse apoio em um momento tão desafiador?
Dom Leonardo: Primeiro tomei um susto. Você atende um telefonema e escuta: “Leonardo, aqui é papa Francisco!”. Respondi em latim: “Senhor eu não sou digno!” Brinquei com ele, pois tinha uma certa liberdade. Você sabe que é emocionante estar em meio a tantas dificuldades e saber que você não está só. Está aí a importância da solidariedade. Tratou-se de um sinal de proximidade. Isso é ser pastor! Depois do telefonema do papa comecei a ligar para os padres e outras pessoas, pois pensei que eles também gostariam de receber uma palavra. Ao receberem a ligação, todos levavam um susto e logo perguntavam: “o senhor está precisando de alguma coisa?” Já respondia que “não, o contato é para saber como você está?”. Foi tão bonito da parte do papa perguntar sobre os povos indígenas. Ele tinha essa preocupação com os mais fragilizados e menores. Papa Francisco sempre foi uma presença muito forte para nós aqui da Amazônia. Diria que para todo o nosso povo foi um momento de alegria e carinho, mesmo enfrentando os desafios da pandemia de covid-19 à época.
Valor:O papa também propôs um Sínodo específico para Igreja na Amazônia. Que frutos estão colhendo dessa experiência?
Dom Leonardo: Como estava servindo, como secretário-geral, à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, não participei diretamente do sínodo, somente de sua preparação. Porém, desde que cheguei a Manaus, em 2021, percebo os fecundos frutos que esse encontro trouxe para a Igreja local. Há, realmente, um esforço de levarmos adiante as propostas do papa. Por exemplo, em todos os encontros diocesanos, os indígenas participam e tem seu momento de fala e são escutados com atenção por todos. Vejo, também, maior participação dos leigos e a preocupação com a preservação do meio ambiente. Enfim, sinto uma igreja mais presente e atuante, ouvindo as angústias da população e construindo uma Amazônia mais justa e humana.
Valor: No Sínodo da Amazônia se discutiu sobre a ordenação presbiteral de homens casados e a ordenação diaconal de mulheres. Esses debates vão continuar?
Dom Leonardo: A Igreja, ao longo dos séculos, passa por processos de transformação. O celibato, por exemplo, entrou por meio de um determinado processo. Esses temas também estão passando por processos. O papa convocou comissões para discutir a viabilidade teológica e pastoral dessas mudanças. Inclusive, estou em uma delas. O resultado, é claro, não está definido. No momento, a Igreja passa por uma bonita fase, pois conta com a participação ativa de leigos, padres, religiosas. Então, tenho a impressão de que as reflexões continuarão, sim.
Valor:Há na Igreja, várias vozes conservadoras contrárias aos avanços propostos pelo papa Francisco…
Dom Leonardo: Essas vozes precisam ser ouvidas. Não devemos calar, o tempo de calar passou. Nós tivemos também isso na Igreja, e veja o que aconteceu. É preciso, portanto, deixar falar, dialogar e conversar. Existem reações às vezes muito duras em relação ao papa Francisco. Isso faz um pouco parte e tenho a impressão de que acentuar certas questões do passado é um pouco de insegurança. Daí colocam na fé esse desejo de segurança. A fé nos concede segurança, mas não é estática. A fé é uma relação de profundidade, em que vamos percebendo Deus guiando a nossa história e participando da nossa vida. Então, é movimento que nos dá oportunidade de aprofundar várias dimensões da vida. Especificamente, quanto a população LGBTQIA+, morei por um ano em Curitiba e, duas vezes na semana, ficava o dia inteiro atendendo confissões. No confessionário, atendia muitas pessoas homoafetivas e, pela escuta atenta, sentia seus dramas, dificuldades, desejos e sonhos. São pessoas e filhos de Deus. É preciso, portanto, ouvi-los, pois, pela escuta, vamos entendendo como inseri-los melhor na vida da igreja e como ajudá-los a viver o evangelho e a seguir Jesus.
Valor:Como o senhor está se preparando para a participação no conclave?
Dom Leonardo: Como é a primeira vez, então a gente nem se prepara. Acho que serei preparado. Será a primeira vez e, talvez, a última por causa da idade.
Valor: Quais características, na sua visão, seriam essenciais para conduzir a Igreja nos desafios atuais e futuros?
Dom Leonardo: É muito difícil querer traçar um perfil, porque o papa tem uma visão da Igreja do mundo inteiro, que nós muitas vezes não temos. Tenho, por exemplo, a compreensão da Igreja do Brasil e da América Latina. A riqueza da Igreja é poder participar das mais variadas culturas e o papa precisa ter diante de si todo esse amplo leque de realidades. Tenho a impressão de que o bispo de Roma acaba moldado pela igreja a partir do que ela necessita. É claro que ele leva o seu jeito, mas a Igreja vai fazendo o papa que precisa.
Valor: Se for eleito, aceitaria?
Dom Leonardo: Não tem perigo nenhum disso acontecer. Fique tranquilo.
Valor: Saímos de uma pandemia, enfrentamos duas grandes guerras e outras com menor visibilidade. Diferentes países vivem ameaças contra a democracia e ainda vemos os impactos crescentes das mudanças climáticas. Nesse cenário, como a Igreja Católica pode contribuir?
Dom Leonardo: Como sempre contribuiu. A Igreja tem procurado sempre pautar suas atuações pela Justiça. É claro que estou falando da Igreja de modo geral, porque temos pessoas que vão à Igreja e não pautam a vida pela Justiça. Há também a contribuição que se dá em termos de fraternidade, de cuidado, e de busca de paz. O papa Francisco intensificou o diálogo pela paz que havia sido iniciado por seus antecessores, João Paulo II e Bento XVI. E, assim, a Igreja vai continuar, pois ela precisa ser sinal do reino de Deus para o mundo.
Valor: O senhor gostaria de deixar mais alguma mensagem?
Dom Leonardo: Não falamos da esperança, não podemos viver sem essa virtude. Inclusive, estamos vivendo o Ano Jubilar da Esperança. Papa Francisco era um homem de muita esperança, prova disso era seu senso de humor, que me deixava admirado. Para alguns místicos, o bom humor é sinal do Espírito Santo. Não falamos muito do bom humor do papa, somente de seus gestos. Acredito que o bom humor do pontífice vinha do fato de saber que, no fundo, não somos nós que fazemos nada, mas o Espírito de Deus.
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