Conecte-se conosco

Amazonas

“Consórcios” do crime organizado e “piratas dos rios” usam drone contra a polícia na Amazônia

Especialistas apontam sobreposição de crimes na Amazônia, em dinâmicas como o “narcogarimpo”, a mineração ilegal explorada por traficantes.

consorcios-do-crime-organizado

Era começo da noite quando uma equipe da Polícia Militar do Amazonas entrou discretamente em uma mata perto do território indígena Guanabara, quase na tríplice fronteira de Brasil, Colômbia e Peru. A denúncia era de que uma embarcação com toneladas de pasta base de cocaína cruzaria um igarapé para driblar a fiscalização em cidades como Tabatinga e Benjamin Constant. Os policiais montaram campana para surpreender os traficantes na madrugada. Ocorreu o oposto. “Deu uma hora da manhã, levantamos nosso drone e ele acusou outro nos monitorando. Era o drone dos ‘caras’”, diz ao Estadãoo major Jonatas Soares,comandante do batalhão da PM no Alto Solimões. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo (Estadão).

Autoridades locais ouvidas pela reportagem relatam aumento no uso de drones na região e nos arredores de Coari por “consórcios” do crime organizado, responsáveis por transportar droga, e também por “piratas dos rios”, focados no saque de embarcações. Há relatos de uso até por grupos do garimpo.

Especialistas apontam sobreposição de crimes na Amazônia, em dinâmicas como o “narcogarimpo”, a mineração ilegal explorada por traficantes. Em alguns casos, as mesmas redes de proteção logística das drogas blindam outras atividades. Essa ameaça à floresta é um dos assuntos que ganham força com a COP30 (Cúpula do Clima das Nações Unidas), que ocorre no próximo mês em Belém.

“(As facções) Usam muito drone nos rios para monitorar nossas bases (postos policiais fluviais) e lanchas. Já estamos em vias de aquisição de equipamentos para fazer a intervenção”, afirmou o secretário de Segurança Pública do Amazonas, Marcus Vinicius Oliveira, em evento de agosto.

Nos arredores da terra indígena Guanabara, a PM não conseguiu localizar os traficantes. Dias depois, em Manacapuru, região metropolitana de Manaus, foi feita a maior apreensão da história do Amazonas: 6,5 toneladas de cocaína e skank (supermaconha).

Agentes envolvidos na operação na mata fechada acreditam que a carga pertencia aos bandidos que acionaram o drone – o flagra pela polícia ocorreu em junho. O aparelho, porém, nunca foi apreendido.

A tecnologia faz parte da rotina das facções na Amazônia, incluindo o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o CV (Comando Vermelho), esse último apontado como o dominante na floresta. Em alguns casos, são equipamentos mais sofisticados do que os da própria polícia. O uso da Starlink, rede de satélite da SpaceX, do bilionário Elon Musk, também se alastra.

“A principal ameaça é a comunicação, que (os criminosos) fazem a todo custo”, afirma César Mello, coronel da reserva da PM do Pará. Segundo ele, os contatos via rádio continuam – é frequente que um barco passe pelo rio primeiro para dizer como está a fiscalização –, mas passaram a dividir espaço com outras estratégias.

“A tecnologia evolui rápido. Qualquer embarcação na região conta com Starlink”, acrescenta Mello, pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O crime absorve as mudanças antes mesmo da polícia.”

O baixo investimento é um entrave para o combate ao tráfico na tríplice fronteira. Tabatinga, uma das principais portas de entrada de carregamentos ilícitos pela Amazônia, tem 60 policiais. Letícia, vizinha colombiana a uma rua de distância, tem efetivo dez vezes maior.

A cidade amazonense teve base fluvial da Polícia Federal a partir de 2015, mas a estrutura foi desativada anos depois. Uma das queixas é de que as forças federais deflagram operações de tempos em tempos, mas não têm presença massiva na fronteira para interceptar cargas – as quatro bases fluviais em operação no Amazonas são do Estado. Procurada, a PF não esclareceu os motivos para fechar a base.

Em março, a PM do Amazonas foi a uma área de mata em Benjamin Constant, na região de fronteira, em busca de um fugitivo do presídio local e acabou encontrando um ponto logístico dos piratas.

Conforme o registro policial, dois suspeitos de envolvimento morreram em troca de tiros com a PM. Outros três foram presos. Foram apreendidos celulares, serra elétrica, pistola 9 milímetros e munição, incluindo de fuzil, além de um drone e uma antena Starlink.

Há relatos de aumento no avistamento de drones há cerca de dois anos na fronteira do Amazonas, uma das principais entradas brasileiras da cocaína produzida na Colômbia e no Peru – este último tem uma capacidade estimada de produzir uma tonelada da droga por dia.

No fim de 2023, representantes da comunidade indígena de Ourique, em Tabatinga, acionaram a polícia após notarem um “objeto estranho” sobrevoando com frequência a região, tida como rota alternativa de grupos que passam drogas e outras cargas ilícitas pela região de fronteira. Algumas mães da comunidade até impediram os filhos de ir à escola sob medo de ataque, contou um policial que acompanhou o caso.

Para tentar resolver a crise, 14 PMs foram deslocados para a comunidade, a cerca de cinco horas do centro urbano de Tabatinga – o trajeto é feito tanto por lancha rápida quanto caminhada em mata fechada. Por lá, constatou-se o sobrevoo do drone, mas não conseguiram apreendê-lo.

“Várias aldeias têm esse tipo de reclamação”, diz o indigenista Orlando Possuelo, assessor técnico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Houve caso parecido relacionado aos povos tikuna, também no Alto Solimões. Há comunidades indígenas que usam drone próprio para proteção, segundo ele.

‘Narcogarimpo’

Edição mais recente do Cartografias da Violência na Amazônia, produzido pelo Instituto Mãe Crioula e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que a chegada do CV e do PCC à Amazônia Legal na última década trouxe “novos contornos à aproximação entre as atividades de tráfico de drogas e da exploração de ouro”.

Entre as razões, estão o interesse do monopólio da venda de droga para os próprios garimpeiros, a partilha da rede logística – como pistas clandestinas – e a própria rentabilidade dos esquemas. A região ficou marcada pelos assassinatos em 2022 do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira após conflitos com um grupo supostamente envolvido em pesca ilegal no Vale do Javari.

O crime organizado no Brasil movimenta mais dinheiro com a venda irregular de combustível, ouro, cigarro e álcool do que com o tráfico de cocaína.

O uso de drones e mais equipamentos é associado também a uma mudança nas estratégias do crime organizado para transportar drogas e mais cargas ilícitas pelos rios, com o objetivo de checar mais de perto a fiscalização e driblar as bases arpão – postos policiais instalados sobre a água.

A diversificação da logística envolve não só investir mais em transporte aéreo, mas também complexificar o transporte pelos rios. “Não vão mais na cara e coragem desde a fronteira até Manaus”, afirma o major Jonatas Soares.

Em vez disso, consórcios que entregam as drogas para facções ou outros grupos criminosos têm preferido avançar em fases, com pontos de apoio que os ajudem a se esconder mata adentro e não se expor diante de fiscalizações. Por vezes, parte dos trajetos é feita até em pequenas canoas, para não levantar suspeita.

Conforme autoridades, os drones são usados também para monitorar grupos rivais. Em junho do ano passado, moradores das comunidades do Tamaniquá e Uará, no município de Juruá, relataram o avistamento de um drone durante a noite às margens do Solimões.

Pouco depois, relataram à polícia intenso confronto no rio com mais de uma hora de trocas de tiros, supostamente entre traficantes e piratas. Passado o tiroteio, todas as noites os moradores passaram a visualizar drones sobrevoando as comunidades, principalmente no Uará, de acordo com registro policial.

Na época, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas deslocou para a região uma lancha blindada. A embarcação saiu da base arpão de Coari, considerada uma das cidades estratégicas para o narcotráfico.

Foram feitas incursões nos lagos e em locais suspeitos de abrigar criminosos por quatro dias, mas eles não foram localizados. Logo após a saída da lancha da PM, uma embarcação com supostos narcotraficantes desceu o rio.

Segundo o tenente-coronel Pedro Moreira, comandante do batalhão da PM do Amazonas em Coari, as investigações apontam que os equipamentos costumam ter autonomia de distância grande, entre 5 a 10 quilômetros. Alguns modelos, além disso, possuem tecnologias que identificam sinais de calor.

Em nota, o Ministério da Justiça e Segurança Pública afirma que as operações no Amazonas desde o ano passado resultaram em 279 prisões e na apreensão de 1,5 tonelada de droga, 51 armas e 29 veículos, totalizando R$ 3,9 milhões em bens.

Entre o fim de setembro e o começo deste mês, uma operação deflagrada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), além do Exército e da Polícia Federal, desarticulou estruturas de garimpo ilegal que vinham operando em diversos pontos estratégicos dos rios Solimões, Içá, Puretê e Jandiatuba, no Amazonas.

Na ação, várias estruturas de garimpo foram destruídas, incluindo dragas do tipo “balsinha”, motores utilizados para a extração de ouro, além de embarcações e barracos que serviam como apoio logístico aos criminosos. Também foram inutilizadas calhas de garimpo, equipamentos de bombeamento e grandes quantidades de óleo diesel.

“A região do Alto Solimões possui alta relevância socioambiental, com territórios indígenas, comunidades ribeirinhas e áreas de florestas preservadas. O avanço do garimpo ilegal ameaça diretamente a qualidade da água, a biodiversidade local e os modos de vida tradicionais”, destacam os órgãos.


Clique para comentar

Faça um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

sete + 9 =