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13 de maio: Amazonas e o Ceará aboliram a escravidão antes de 1888

O 13 de maio de 1888 marca o fim, formal, da escravidão no Brasil. No entanto, a data não é motivo para comemoração. Apesar da liberdade, a busca por direitos e por uma vida digna perdura, mesmo após a abolição.

Em 30 de agosto 1881, um grupo de jangadeiros responsáveis pelo embarque de mercadorias no porto da capital da província do Ceará entrava em greve. As informações são da BBC Brasil.

Liderados por José Luís Napoleão, um escravo liberto que comprara a própria liberdade – e a de quatro irmãs – com suas economias, e por Francisco José Nascimento, filho de pescadores da cidade de Aracati, eles se recusavam a transportar os negros escravizados que seriam levados dali para outras províncias.

Já tinham se passado 30 anos desde que o tráfico transatlântico havia sido proibido e uma década da Lei do Ventre Livre, que considerava livres todos os filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir de sua promulgação.

A escravidão no Brasil, entretanto, se mantinha – ainda que sob uma oposição crescente da opinião pública, em parte influenciada pelo abolicionismo nos EUA e em diversos outros países, e diante da resistência dos escravizados contra a exploração de seu trabalho e a violência.

O simbolismo da insurreição dos jangadeiros correu o Império.

Em 1883, os “catraieiros” do Amazonas, que desempenhavam a mesma função dos jangadeiros cearenses – ligavam o cais do porto aos navios com suas pequenas embarcações – também entraram em greve e se negaram a transportar os negros escravizados que seriam enviados do Norte a outras regiões do território.

No ano seguinte, as duas províncias aboliram a escravidão – quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea em 13 de maio de 1888.

O pioneirismo foi resultado de uma conjunção de fatores, que vão desde o ativismo dos abolicionistas ao papel secundário dos escravizados na economia local.

A articulação com o movimento nacional, capitaneado por figuras como José do Patrocínio, Joaquim Nabuco e André Rebouças, foi determinante.

Além de avaliarem as causas, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também destacam um lado “obscuro” e menos discutido da abolição antecipada: a liberdade precária dos alforriados “sob condição”, que continuavam tendo de prestar serviço aos antigos senhores, muitos como empregados domésticos.

O tráfico interprovincial e o ‘Dragão do Mar’

A mão de obra escrava não chegou a ser predominante no Ceará como o foi nas províncias nordestinas de Pernambuco e da Bahia, diz o historiador Eurípedes Funes, da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Ela era usada em paralelo à força de trabalho de “pobres e livres” e de escravos indígenas. Por ser uma área de colonização tardia, acrescenta Franck Ribard, também do departamento de História da UFC, o Ceará concentrava número elevado de indígenas, muitos fugidos de outras regiões onde eram capturados em massa nas primeiras décadas da colonização e submetidos a trabalhos forçados.

A economia local era baseada na pecuária, que não demandava a mão de obra intensiva da grande empresa açucareira que moveu o Brasil colônia nos séculos 16 e 17.

O Amazonas, por sua vez, era a província com o menor número de homens e mulheres escravizados do Império, conta Patrícia Melo Sampaio, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

De acordo com o censo de 1872 – o primeiro do Brasil -, pouco mais de uma década antes da abolição viviam lá 979 escravizados, número bastante inferior aos 6,6 mil registrados no Mato Grosso, província que estava imediatamente antes na lista.

“Sua importância, contudo, não deve ser minimizada com base nesses dados. A propriedade escrava era um poderoso marcador de distinção social e de privilégios – e a elite possuidora de escravos tinha clareza disso”, ressalta a pesquisadora.

Isso porque ter escravos significava possuir um bem extremamente valioso em uma sociedade com poucas opções de crédito e baixa liquidez.

Além de vendê-los, os “senhores” poderiam alugá-los para prestar serviços a terceiros como amas de leite, criadas, carpinteiros e marceneiros – e os jornais do Ceará dessa época estão cheios de anúncios desse tipo – ou usá-los como lastro em operações mercantis, ou seja, como garantia em caso de não pagamento de dívidas.

“É preciso compreender a multiplicidade de facetas e do enraizamento da escravidão no Brasil imperial, e o Amazonas não escapa desta lógica.”

Isso explica, por exemplo, porque o tráfico interprovincial ganhou fôlego na década de 1870.

Nessa época, “senhores” de áreas em decadência econômica, como Norte e Nordeste, passaram a vender seus cativos para províncias em que se pagava muito por eles – especialmente as do Sudeste, onde a indústria do café crescia movida pelo trabalho do negro escravizado, explica a historiadora Maria Alice Rosa Ribeiro, que pesquisa a sociedade escravista campineira no Centro de Memória da Unicamp.

Milhares de homens e mulheres foram parar no Oeste Paulista e no Vale do Paraíba dessa maneira.

A história da greve dos jangadeiros entra justamente nesse contexto. José Luís Napoleão, Francisco José Nascimento – que ficaria conhecido como “Dragão do Mar” – e os colegas se recusaram a transportar os escravos da praia às embarcações que os levariam às cidades onde os novos “donos” os esperavam.

A história virou símbolo da abolição no Estado – e inclusive deu “força extra para a mobilização amazonense”, diz Patrícia Sampaio -, mas ela não foi “espontânea”, ressalta Ângela Alonso, professora livre-docente do departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).

As sociedades abolicionistas

Os jangadeiros se organizaram por meio da Sociedade Libertadora Cearense, formada por políticos e intelectuais da província e articulada com o movimento abolicionista nacional.

Os clubes e sociedades abolicionistas começaram a pipocar no império a partir da década de 1860, influenciadas em parte por movimentos semelhantes em países como Estados Unidos e Cuba.

“Os intelectuais da época eram cosmopolitas, eles não eram caipiras, como muita gente imagina. Viajavam, acompanhavam as notícias internacionais – que, depois do telégrafo, instalado no Brasil na década de 1860, chegavam aqui mais rápido ainda”, diz a autora de Flores, votos e balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88).

Assim, a elite brasileira do século 19 acompanhou atenta os episódios da Guerra de Secessão americana, que teve início em 1861 e que contrapôs os Estados do Sul, escravistas, e os do Norte, favoráveis à abolição. Lá, a 13ª Emenda, que acabou com a escravidão, foi assinada por Abraham Lincoln em 1865.

A libertação dos escravizados no Brasil, ressalta a socióloga, fez parte de um “dominó internacional”, uma sequência de abolições.

Das ‘vaquinhas’ para compra de alforria às insurreições
Os clubes e sociedades em todo o país faziam campanha através da imprensa e, em muitas províncias, arrecadavam fundos para comprar a liberdade de escravizados – um dispositivo institucionalizado em 1871, com a Lei do Ventre Livre, que também criou oficialmente o fundo de emancipação.

Com o tempo, as cerimônias de entrega das cartas aos escravizados foram virando eventos cada vez maiores, teatralizados, com leituras de poesia e realização de concertos.

A estratégia de compra das alforrias, para Alonso, era uma forma de os abolicionistas sinalizarem a construção de uma abolição gradual, sem afronta direta ao status quo – que, nos EUA, esteva na raiz na guerra civil.

De vez em quando, entretanto, apareciam episódios como o da greve dos jangadeiros, para pressionar o governo com uma ameaça de possível radicalização. Não por acaso, o caso foi amplamente noticiado por José do Patrocínio, figura central do abolicionismo – que tinha interlocução com os ativistas cearenses -, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro.

“Os jangadeiros só conseguiram fazer o que fizeram porque tinham parte importante da elite política e das forças policiais ao seu lado”, ela acrescenta.

No Ceará, o abolicionismo ganhou fôlego depois da “grande seca” de 1877, que se estendeu por três anos e deixou a província em estado de calamidade, diz o historiador Eylo Fagner Silva Rodrigues, que dedicou a pesquisa de mestrado e doutorado ao tema da escravatura e da abolição no Estado.

No Amazonas, a atuação das sociedades abolicionistas teve ajuda importante da maçonaria, que se “dedicou intensamente a angariar recursos” para o fundo de emancipação, diz Sampaio, da UFAM.

Reconhecimento internacional

Um dos ativistas responsáveis pela “ritualização” das entregas das cartas de alforria foi o educador baiano Abílio César Borges, que foi professor de uma geração de abolicionistas que inclui Rui Barbosa, Castro Alves e o político Sátiro de Oliveira Dias – que foi presidente da província do Ceará e, em 25 de março de 1884, assinou a abolição.

Havia uma expectativa nacional pela promulgação no Ceará. Meses antes, na Gazeta de Notícias, José do Patrocínio inaugurou uma coluna semanal com uma “contagem regressiva” que enumerava as cidades cearenses em que a abolição já havia sido decretada.

A primeira foi Acarape, atual Redenção.

Em uma manobra para evitar uma contraofensiva por parte do governo central, quando a data estipulada pelos ativistas para a abolição se aproximava, expoentes do movimento buscaram apoio e reconhecimento internacional para ela – Joaquim Nabuco organizou um banquete em Londres e José do Patrocínio fez outro em Paris.

“Quando aconteceu de fato, ela já era impossível de reprimir”, diz Alonso, que é presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

José do Patrocínio tinha interlocução direta com os abolicionistas cearenses — Foto: Acervo Biblioteca Nacional
José do Patrocínio tinha interlocução direta com os abolicionistas cearenses — Foto: Acervo Biblioteca Nacional

No Amazonas, o presidente da província, Theodoreto Souto – que era cearense -, promulgou a abolição em 24 de maio, quando foram libertos os últimos escravos matriculados na província.

O plano dos abolicionistas de promover a abolição gradativamente nas demais províncias foi interrompida por uma reação dos escravistas, que conseguiram alçar ao Conselho de Ministros o conservador Barão de Cotegipe, que capitaneou uma repressão severa ao movimento abolicionista, com perseguições físicas e judiciais.

A promulgação da Lei Áurea em 13 de maio de 1888 se dá em um cenário de crise no império, com intensificação das fugas e insurreições de escravizados.

O documento assinado pela princesa Isabel estava longe do que os abolicionistas imaginavam. O projeto encampado por eles, de Manuel Pinto de Sousa Dantas, que foi presidente do Conselho de Ministros entre 1884 e 1885, previa o pagamento de uma espécie de renda mínima aos alforriados e a distribuição de terras, “uma espécie de minirreforma agrária”.

“Mas uma parte do movimento abolicionista decidiu apoiar (a Lei Áurea) porque não sabia quando teria outra oportunidade (de institucionalizar o fim da escravidão)”, diz Alonso.

O lado ‘obscuro’ da abolição precoce

A liberdade precária – que não discutiu a inserção dos novos cidadãos na sociedade brasileira ou no mercado de trabalho – não foi exclusividade de 1888.

No Ceará e no Amazonas, a maior parte das alforrias foi dada “sob condição”: o liberto tinha de pagar um pecúlio para “ressarcir” o senhor e/ou se comprometer a continuar trabalhando para ele, muitas vezes sem salário.

Em Manaus, diz Patrícia Sampaio, da UFAM, cerca de 60% das alforrias registradas nos cartórios são onerosas – muitas condicionando a compra da carta de liberdade à continuidade da prestação dos serviços.

“Ou seja, os senhores ganhavam a melhor parte: recebiam o dinheiro e continuavam a contar com o trabalho do alforriado.”

Isso explica porque, três anos depois da abolição, explodiu o número de “criados de servir e agregados” no censo de 1887 em Fortaleza, ressalta o historiador Eurípedes Funes.

O chamado Livro de Matrículas de Criados do Estado está cheio de exemplos ilustrativos de “trabalhadores livres, porém ainda recolhidos aos cativeiros domésticos”, na definição de Eylo Fagner Rodrigues.

Um deles é o de Eugênia Joaquina da Conceição, registrada por seu antigo proprietário, João Luiz Rangel, em 11 de julho de 1887, da seguinte forma: “minha ex-escrava, continua a residir na minha casa, como creada, gratuitamente, por tempo indeterminado”.

Casos como esse não eram incomuns. Muitos dos libertos continuaram vivendo sob o teto dos “ex-senhores” e passaram a trabalhar em troca de roupa e comida – inclusive crianças – em condições muitas vezes parecidas às que eram submetidos até 1884.

O pesquisador encontrou nos arquivos do antigo Tribunal da Relação da Província do Ceará, atual Tribunal de Justiça, várias ações de libertos contra ex-proprietários que os tentavam reescravizar.


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