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Brasil

Revista diz que lobby pró-cloroquina põe pesquisadores do Amazonas na fogueira

Cientistas que participaram da pesquisa com a cloroquina tornaram-se alvo de um inquérito civil instaurado por três procuradores do Ministério Público Federal

Variety of pills and capsules

“Eu me sinto um pouco como Galileu Galilei”, diz o infectologista Marcus Lacerda, coordenador de um estudo que apontou para os riscos da cloroquina para vítimas da covid-19 em Manaus. Ele faz relação com o físico italiano quase foi queimado vivo pela inquisição católica no século XVII por defender a tese de que a Terra girava em torno do Sol.

As informações são da Revista Piauí: Lacerda e outros 27 pesquisadores brasileiros que participaram da pesquisa com a cloroquina tornaram-se alvo de um inquérito civil instaurado por três procuradores do Ministério Público Federal (MPF), dois deles simpatizantes do bolsonarismo. Diz que procuradores da República em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul, instauraram inquérito civil contra pesquisadores, alegando que “a dose de cloroquina oferecida aos pacientes em Manaus é três vezes maior que a “dose máxima segura” e cita “eventuais fragilidades epistemológicas e procedimentais do estudo, cujos resultados podem influenciar medidas de enfrentamento farmacológico à propagação da covid-19 na população brasileira como um todo”.

A portaria elenca 32 questões que deverão ser respondidas pelos pesquisadores, convocados a prestar esclarecimentos ao MPF, diz a revista. Entre as perguntas, “por que estudar o uso da cloroquina em pacientes graves, quando é razoável esperar maiores ganhos na fase precoce, oligossintomática (com poucos sintomas) da infecção” – um pleito recorrente do bolsonarismo. A portaria só foi divulgada no site do MPF no dia 22, quarta-feira, e publicada no diário oficial dia 23.

A Piauí informa que, dos três procuradores que assinam o documento do MPF, dois têm feito em suas redes sociais a defesa de pautas comuns ao bolsonarismo. O primeiro, atuante em Bento Gonçalves, é Alexandre Schneider, que ganhou fama em fevereiro, quando publicou em seu perfil no Instagram uma frase ofensiva à repórter da Folha Patrícia Campos Mello, alvo de difamação na CPI das Fake News, na Câmara dos Deputados. “Cuidado para você que quer ser jornalista: não confunda dar furo de reportagem com dar o furo pela reportagem”, escreveu Schneider – repetindo a ofensa feita publicamente, horas antes, pelo presidente Bolsonaro. O segundo é Wesley Miranda Alves, lotado em Ituiutaba, Minas Gerais. Em sua página no Twitter, em várias ocasiões ele chama Trump de “gênio” e “mito”. O terceiro é Higor Rezende Pessoa, que atualmente trabalha em Palmas, Tocantins. A revista informa que, procurados por meio das assessorias do MPF nos estados, os procuradores não quiseram se manifestar.

“Torcida não combina com ciência. Esse comportamento coloca os cientistas contra a sociedade, o que não se pode aceitar, já que, assim como a sociedade, também queremos soluções para essa doença tão grave”, diz Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia. Na sexta-feira, 24, o estudo dos pesquisadores de Manaus foi publicado pela revista da Associação Médica Americana (Jama, na sigla em inglês). Em editorial baseado na pesquisa brasileira, a publicação defende cautela no uso da cloroquina contra doentes de coronavírus. “Os resultados deste ensaio devem provocar algum grau de ceticismo às alegações entusiásticas sobre a cloroquina e talvez servir para coibir seu uso exuberante. Por enquanto, os médicos prudentes devem discutir com os pacientes e suas famílias, quando possível, os riscos potenciais desse medicamento e os benefícios incertos antes de iniciá-lo.”

Os pesquisadores, diz a revista, estão sofrendo um linchamento virtual, com ameaças de morte, por contrariarem a versão, difundida de que o medicamento é benéfico às vítimas do coronavírus. Há mais de uma semana Marcus Lacerda e a família andam com escolta policial na capital do Amazonas. “Desde o fim da ditadura militar, nenhum cientista passou por isso no Brasil”, afirma o infectologista.

No dia 11 de abril, 27 pesquisadores, a maioria ligada à Fiocruz e à Fundação de Medicina Tropical em Manaus, publicaram no repositório digital medRxiv, que divulga trabalhos ainda não submetidos à avaliação de outros cientistas, os resultados de um estudo avaliando os efeitos de altas doses de cloroquina e azitromicina em 81 pacientes com covid-19 no hospital Delphina Rinaldi Abdel Aziz, da capital amazonense. Metade dos doentes recebeu doses de 450 mg de cloroquina durante cinco dias; o restante recebeu uma dose de 600 mg duas vezes ao dia por dez dias. Já no terceiro dia, os pesquisadores observaram um aumento significativo de arritmias cardíacas no segundo grupo de pacientes. No sexto dia, a pesquisa com esse segundo grupo foi interrompida depois que onze deles morreram. A letalidade, de 13%, é menor do que a de 18% para pacientes que não usaram a cloroquina, segundo estudos internacionais.

Segundo os pesquisadores, o estudo, aprovado pelo Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), não teve pacientes em quantidade representativa no primeiro grupo (que recebeu as doses mais baixas) para concluir com segurança que a cloroquina era eficaz para os doentes de covid-19. “Para mim, esse estudo transmite uma informação útil: a cloroquina causa um aumento dependente da dose em uma anormalidade no eletrocardiograma que pode predispor as pessoas à morte cardíaca súbita”, disse o Dr. David Juurlink, chefe da divisão de farmacologia clínica da Universidade de Toronto, em reportagem publicada no dia 12 pelo jornal The New York Times.


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