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Brasil

Ditadura temeu ser denunciada por genocídio de indígenas, revelam arquivos

O argumento do governo era que o país adotava uma política em relação à população indígena que era “positiva e cuidadosamente realizada”.

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O regime militar brasileiro (1964-1985) temeu ser alvo de uma denúncia internacional de genocídio contra os povos indígenas e se preparou para enfrentar a crise diplomática em uma conferência da ONU. O caso acabou não entrando na agenda da reunião, em 1968. Mas uma pesquisa realizada a partir dos arquivos do Itamaraty revela a preocupação dos generais e a estratégia que eles queriam implementar para blindar o governo.

Os documentos foram obtidos por João Roriz e Renata Nagamine, da UFG (Universidade Federal de Goiás) e da USP (Universidade de São Paulo). De acordo com a pesquisa, houve uma mobilização por parte do Itamaraty para defender o regime, inclusive com o argumento de que o tema dos direitos humanos não deveria ocupar a agenda da ONU.

“No final da década de 1960, quando acusações de genocídio contra o Brasil apareceram em vários jornais nacionais e internacionais, a ditadura militar começou a se sentir cada vez mais inquieta”, apontou o estudo. Em 1967, um relatório revelou questões sistêmicas e generalizadas de direitos de povos indígenas envolvendo o órgão estatal Serviço de Proteção ao Índio. A palavra “genocídio” ganhou as manchetes nacionais e internacionais e constrangeu as autoridades que representavam uma ditadura em busca de legitimidade.

Um ano depois, as Nações Unidas organizaram a Primeira Conferência Internacional sobre Direitos Humanos em Teerã, no Irã, para comemorar os 20 anos da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Segundo a pesquisa, a preparação brasileira incluiu uma argumentação jurídica baseada em uma orientação assimilacionista, voltada para “civilizar” a população indígena e ignorar as denúncias de genocídio. “O regime militar entrelaçou uma tradição de missão civilizatória com uma ideologia autoritária de unidade nacional para produzir práticas jurídicas racistas e coloniais em relação aos povos indígenas no Brasil”, disseram os pesquisadores.

“Por trás dos argumentos legais da ditadura brasileira estava a ideia de ‘democracia racial’ entre as três raças no Brasil, os brancos, os negros e os indígenas”, apontaram. “Ela pressupõe que a sociedade brasileira viva em uma harmonia quase paradisíaca, e que a cooperação no trabalho seja essencial para o desenvolvimento do país.”

O que eram os documentos

De fato, o documento preparatório da delegação brasileira evidencia o desconforto do governo logo em sua linha, que afirma que “sabe-se primeiro que as Nações Unidas não têm autoridade para lidar com reclamações de materiais relativos à transparência de direitos humanos”.

Para os dois acadêmicos, a ditadura parecia visivelmente preocupada com o fato de que a questão dos direitos humanos poderia ser usada contra ela —daí a necessidade de reiterar que, “no campo dos direitos humanos, a ONU cumpre uma função essencialmente normativa e estimulante; ela não decide legalmente ou busca conciliação para questões ligadas aos Estados membros e indivíduos sob sua respectiva jurisdição”.

O Brasil era contra a criação do órgão de direitos humanos na ONU

Ao longo dos anos 70, a ditadura continuaria a defender essa mesma leitura da Carta da ONU. “Além disso, não que provavelmente era uma alusão à tentativa de estabelecer um Alto Comissariado para os Direitos Humanos, as instruções declaravam explicitamente que o Brasil deveria se opor à criação de novas instituições de direitos humanos dentro da ONU”, disse.

De acordo com a pesquisa, a preocupação geral da ditadura era que a questão dos direitos humanos não autorizasse a ONU a investigar indivíduos particularmente específicos.

Mas o tema que mais preocupava o Brasil foi chamado de “questão indígena”. “Nesse sentido, as instruções de Brasília para o corpo diplomático foram cristalinas: ‘A delegação brasileira deve se opor a qualquer tentativa, por parte da Conferência, de considerar a questão das populações indígenas brasileiras'”, dizia o documento da diplomacia encontrado nos arquivos do Itamaraty.

A ordem era mostrar que, quando o Estado brasileiro tomou conhecimento de “irregularidades” contra a população indígena, introduziu uma série de medidas, como remoção de 33 servidores públicos e suspensão de outros 17, e expressou que poderia haver processos criminais. O documento também declarou a criação da Funai, o novo órgão responsável pelos povos indígenas. Entre seus objetivos, a Funai deveria “ocupar a Amazônia, com a ajuda dos silvícolas”.

Em relação ao genocídio, ele afirmava que os perpetradores não tinham como objetivo exterminar a população indígena “como um grupo étnico ou cultural”. Faltava a “intenção especial necessária para a caracterização do genocídio”, concluída; eram “crimes comuns” perpetrados com “razões exclusivamente econômicas”.

O argumento do governo era que o país adotava uma política em relação à população indígena que era “positiva e cuidadosamente realizada”.

“A retórica da ‘democracia racial’ ocupou o centro do palco e permitiu a construção de uma agenda de direitos humanos bem adequada à ditadura brasileira”, avaliam os pesquisadores.

Silêncio absoluto

O que também chama a atenção é que, durante uma conferência, o Brasil optou por um silêncio absoluto. A delegação do Itamaraty foi liderada pelo embaixador Cyro Freitas Valle, um diplomata experiente e polêmico, que assinava quase todas as comunicações com Brasília.

“A delegação se comportou de forma muito discreta”, indica o estudo. “Surpreendentemente, não há evidências de que tenha participado de qualquer discussão. Em todos os registros, não se encontra uma única observação feita pelo corpo diplomático brasileiro na transcrição de 176 páginas da primeira à décima terceira reunião ou na transcrição de 161 páginas da décima quarta à vigésima sétima reunião”, apontam os pesquisadores.

Além disso, os documentos disponíveis nos arquivos da ONU em Genebra apenas se referem aos votos do Brasil durante os momentos de deliberação. Na documentação final, que reúne os documentos aprovados e as declarações formais dos países, não há discursos brasileiros.

Brasil saiu sem fuga da cúpula

Apesar do medo do regime militar, a constatação dos pesquisadores é que o governo conseguiu sair do evento sem aquecimento. Os temas escolhidos para serem tratados acabaram sendo outros, dominados acima de tudo pela discussão da luta anticolonial, Israel e o apartheid.

Segundo os pesquisadores, o fato de que a maioria dos participantes não representava regimes democráticos “também pode ter permitido que o regime brasileiro se tornasse parte da coletividade autoritária”. “Por fim, a política externa de Costa e Silva vinha fortalecendo o relacionamento do Brasil com outros países em desenvolvimento, e sua retórica se encaixava na agenda da Conferência”, avaliam.

O levantamento concluiu que o evento teve pouco impacto sobre a política externa do Brasil. “Primeiro, porque os quadros de direitos humanos consolidados em Teerã eram semelhantes aos entendimentos do próprio regime; segundo, porque as violações perpetradas pelo governo brasileiro, incluindo sua brutalidade de longos dados contra grupos indígenas, não foram pertencentes”, diz.

“Outras questões controversas também não foram abordadas e, em suma, o Brasil chegou seguramente fora dos holofotes internacionais. Além disso, os direitos humanos ainda não tiveram ganho destaque entre os ativistas que se opuseram publicamente à ditadura”, completaram.


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