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Inquérito da ONU aponta matança generalizada e atribui crimes de guerra a Israel e ao Hamas
Relatórios apontam matança generalizada e violência sexual tanto por parte das forças israelenses quanto por militantes palestinos.
Um inquérito das Nações Unidas sobre os primeiros meses da guerra em Gaza revelou que tanto Israel como o Hamas cometeram crimes de guerra e graves violações do direito internacional, na primeira investigação aprofundada do organismo sobre os ataques de 7 de outubro e o conflito que se seguiu.
Os relatórios contundentes divulgados nesta quarta-feira (12), que cobrem acontecimentos até ao final de 2023, pintam um quadro alarmante de ambos os lados ignorando rotineiramente o direito internacional num conflito devastador que já dura mais de oito meses, dividindo amargamente a opinião global e aumentando as tensões em todo o Oriente Médio.
Os relatórios da Comissão de Inquérito das Nações Unidas começam relatando o que aconteceu em 7 de outubro, o dia em que o Hamas e outros grupos armados palestinos lançaram uma onda de assassinatos e raptos no sul de Israel, que matou mais de 1.200 pessoas, a maioria civis, e fez cerca de 250 pessoas serem feitas reféns.
Os crimes de guerra citados pela comissão naquele dia incluíam ataques dirigidos intencionalmente contra civis, homicídio ou homicídio doloso, tortura, tratamento desumano ou cruel, ultrajes à dignidade pessoal e tomada de reféns, incluindo crianças.
Os massacres levaram Israel a declarar guerra ao Hamas e a lançar um ataque a Gaza que destruiu grande parte do enclave densamente povoado e matou mais de 37 mil pessoas, segundo as autoridades de saúde de Gaza.
Nos primeiros 2,5 meses do conflito, concluiu a comissão, Israel cometeu crimes de guerra, bem como crimes contra a humanidade – estes últimos definidos como um ataque generalizado e sistémico dirigido a uma população civil. Os alegados crimes de guerra de Israel incluem fome, detenção arbitrária e assassinato e mutilação de “dezenas de milhares de crianças”.
Tanto Israel como o Hamas cometeram violência sexual e tortura, e atacaram intencionalmente civis, de acordo com os relatórios, que abrangem mais de 200 páginas.
A comissão disse que as suas conclusões se basearam em entrevistas com vítimas e testemunhas, milhares de itens de código aberto verificados através de análises forenses, centenas de documentos, imagens de satélite, relatórios médicos forenses e cobertura midiática, incluindo várias investigações publicadas pelo canal CNN.
A CNN entrou em contato com o governo israelense e o Hamas para comentar. Israel anunciou anteriormente a sua recusa em cooperar com o inquérito.
Os novos relatórios somam-se às alegações feitas por outros grandes organismos internacionais.
O procurador do Tribunal Penal Internacional anunciou no mês passado um pedido de mandado de prisão para vários líderes importantes do Hamas e de Israel, incluindo o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, sob acusações de crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
À época, tanto o Hamas como Israel condenaram as acusações – com o Hamas descrevendo o pedido como uma tentativa de “igualar as vítimas aos agressores”, e Netanyahu classificando a petição como um “ultraje político”.
E em fevereiro, os militares israelenses negaram as acusações feitas por especialistas da ONU de violações dos direitos humanos de adolescentes e mulheres palestinas em Gaza e na Cisjordânia – qualificando as alegações de “desprezíveis e infundadas”.
Ataques de 7 de outubro
O relatório examinou as ações do Hamas durante os ataques de 7 de outubro, que descreveu como “sem precedentes em escala na história moderna (de Israel)… invocando o trauma doloroso da perseguição passada, não só para os judeus israelenses, mas para o povo judeu em todo o mundo”.
Militantes do Hamas sequestraram reféns “sem levar em conta idade ou sexo”, alguns foram baleados, mortos e seus corpos apresentados em praça pública, disse o relatório. Em particular, visaram mulheres, cujos corpos foram “usados como troféus de vitória por perpetradores do sexo masculino… (e) expostos publicamente, quer nas ruas da Faixa de Gaza, quer online”, concluiu.
A comissão afirmou ter “evidências documentadas de violência sexual” perpetrada por grupos armados palestinos em vários locais do sul de Israel em 7 de outubro.
A comissão também analisou testemunhos de violação recolhidos por jornalistas e pela polícia israelense, mas disse que não foi capaz de verificá-los de forma independente devido à falta de acesso às vítimas ou aos locais dos crimes, e porque Israel obstruiu as suas investigações.
Os autores do relatório destacaram o número de crianças israelenses vitimas – muitas das quais testemunharam os assassinatos dos seus pais e irmãos e foram alvo de rapto.
Forças israelenses infligindo ‘dano máximo’
No ataque subsequente de Israel ao Hamas, escreveu a comissão, as suas forças pretendiam infligir “danos máximos” sem tomar precauções suficientes – o que levou a um número impressionante de mortos em Gaza, a ferimentos devastadores e à destruição de infraestruturas civis.
“O uso deliberado de armamento pesado pelas forças de segurança israelenses com grande capacidade destrutiva em áreas densamente povoadas constitui um ataque intencional e direto à população civil, afetando particularmente mulheres e crianças”, afirmou a comissão.
Também fez referência a reportagens da CNN que conclui que quase metade das munições ar-solo que Israel utilizou em Gaza não eram guiadas, o que significa que eram menos precisas e representavam uma ameaça maior para os civis na faixa densamente povoada.
O porta-voz das Forças de Defesa de Israel, Nir Dinar, disse à CNN: “Não abordamos o tipo de munições utilizadas”.
O relatório da ONU citou duas outras investigações da CNN que mostraram que as forças israelenses mataram intencionalmente civis que não representavam qualquer ameaça, muitas vezes ao longo de rotas de evacuação e em áreas seguras já designadas previamente.
O cerco de Gaza representa uma “punição coletiva contra a população civil”, de acordo com o relatório da ONU – que acusou Israel de reter bens críticos como água, alimentos, eletricidade, combustível e ajuda humanitária para “ganhos estratégicos e políticos”.
Violência sexual e retórica inflamatória
O relatório ainda detalha alegações de forças israelenses que praticavam violência sexual tanto em Gaza como na Cisjordânia ocupada por Israel – com a intenção de demonstrar “a subordinação de um povo ocupado”.
As vítimas foram supostamente interrogadas ou abusadas enquanto estavam nuas ou parcialmente vestidas, vendadas e obrigadas a ajoelhar-se ou manter as mãos amarradas nas costas, concluiu o relatório.
Muitos palestinos foram forçados a tirar a roupa em público e a caminhar enquanto eram assediados sexualmente, sendo os seus familiares obrigados a assistir. Embora tanto homens como mulheres tenham sido vítimas de violência sexual, a maioria dos casos aconteceu com homens e rapazes.
O relatório também destacou a retórica inflamatória usada por altos funcionários israelenses, incluindo o presidente e o primeiro-ministro, que a comissão da ONU disse ser equivalente a incitamento e “pode constituir outros crimes internacionais graves”.
Algumas autoridades israelenses pediram “violência e matança de palestinos, o apagamento da Faixa de Gaza, vingança, punição coletiva, observando que não há civis inocentes na Faixa de Gaza, planejando novos assentamentos israelenses sobre os escombros da Faixa de Gaza e pedindo a remoção dos palestinos de Gaza para outros Estados”, disse o relatório, sem atribuir as falas a autoridades específicas.
Algumas das declarações mais extremas no gabinete profundamente dividido de Israel vieram de membros da extrema direita como o Ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, e o Ministro das Finanças, Bezalel Smotrich.
Eles são frequentemente condenados por outros membros do gabinete, como Benny Gantz, que renunciou no domingo, e o ministro da Defesa, Yoav Gallant.
Tensões ONU-Israel
A comissão, criada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2021, após um conflito de 11 dias que matou mais de 200 pessoas em Israel e em Gaza, disse que Israel obstruiu o seu acesso a Israel e aos territórios palestinos durante a investigação.
O colegiado afirmou que as autoridades israelenses proibiram profissionais médicos de falar com os investigadores e não responderam a quaisquer pedidos de informação da ONU.
A comissão também solicitou informações à Autoridade Palestina, que governa a Cisjordânia, disse. A Autoridade Palestina forneceu “comentários extensos” e indicou que receberia com satisfação uma visita da ONU, disse a comissão.
O Hamas, rival da Autoridade Palestiniana, governa Gaza e não ficou claro no relatório se os autores também contataram o grupo militante.
Em dezembro, o Embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, acusou o Conselho de Direitos Humanos da ONU de ser “moralmente distorcido” e antisemita. Erdan chamou a sua investigação de “100% tendenciosa contra Israel” e disse que Israel não cooperaria.
As tensões na relação entre a ONU e Israel atingiram seu pico nos últimos meses, com altos funcionários da ONU altamente críticos da conduta de guerra de Israel em Gaza.
O Conselho de Segurança da ONU – do qual Israel não faz parte – tentou durante meses, depois de 7 de outubro, aprovar uma resolução apelando a um cessar-fogo imediato. Os EUA, o aliado mais próximo de Israel e o seu principal fornecedor de armas, usaram consistentemente o seu poder de veto para bloquear tal medida – até que finalmente se abstiveram em março, permitindo a aprovação da resolução, que foi imediatamente criticada por Israel.
E no mês passado, uma votação não vinculativa na Assembleia Geral da ONU mostrou um apoio internacional esmagador a um Estado palestino independente – deixando os Estados Unidos e os aliados de Israel isolados. Israel e os EUA sustentam que um Estado palestino só deverá ser estabelecido através de um acordo negociado entre os atores da região.
Outro ponto de discórdia é a UNRWA, a agência da ONU para os refugiados palestinos, que desempenha um papel central na alimentação e no abrigo de centenas de milhares de refugiados.
As autoridades israelenses há muito que criticam a UNRWA, acusando-a de desviar ajuda para o Hamas, bem como de ter membros do Hamas em seus quadros. Mais de uma dúzia de países suspenderam o financiamento à agência depois de Israel ter acusado pelo menos 12 funcionários da UNRWA de estarem envolvidos nos ataques terroristas de 7 de outubro. Desde então, a maioria retomou o financiamento.
Em março, a agência acusou Israel de deter e torturar alguns dos seus funcionários, coagindo-os a fazer confissões falsas sobre os laços da agência com o Hamas.
Nos últimos meses, a UNRWA enfrentou ameaças, assédio e violência perpetrados por israelenses – com a sede em Jerusalém Oriental incendiada enquanto o pessoal estava lá dentro. A CNN não pode confirmar as alegações de Israel ou da UNRWA.
No seu relatório desta quarta-feira, os autores da comissão instaram Israel a estabelecer imediatamente um cessar-fogo, a que o Hamas libertasse os reféns, a que Israel pusesse fim às suas práticas de abuso sexual contra os palestinos e a permitir o acesso para futuras investigações.
“É imperativo que todos aqueles que cometeram crimes sejam responsabilizados”, disse o presidente da comissão, Navi Pillay.
“A única maneira de parar os ciclos recorrentes de violência, incluindo a agressão e a retribuição de ambos os lados, é garantir a adesão estrita ao direito internacional”.
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