Conecte-se conosco

Economia

Só 23% dos entregadores e motoristas de app têm cobertura do INSS , diz estudo

Governo Lula diz que priorizará a regulação desse tipo de trabalho em uma reforma trabalhista.

Apenas um a cada quatro (23%) entregadores e motoristas autônomos paga contribuição ao INSS. (Foto:Bruno Kelly_Reuters)

A proteção da Previdência Social não é a realidade da maioria dos brasileiros que trabalham por conta própria (sem carteira assinada) com entrega de mercadoria e transporte de passageiros. Isso é o que mostra uma pesquisa inédita à qual a BBC News Brasil teve acesso, publicada pelo site g1.

Apenas um a cada quatro (23%) entregadores e motoristas autônomos paga contribuição ao INSS, segundo o estudo, de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ou seja, os 77% que não contribuem com a Previdência Social, além de não terem seu tempo de trabalho contado para a aposentadoria, não estão protegidos em casos de acidentes, como o de Lima, ou de doenças que exijam afastamento do trabalho. Também não recebem salário-maternidade e não deixam pensão por morte para dependentes.

O levantamento – que inclui motoristas, taxistas e entregadores em motos e bicicletas – aponta que o total de trabalhadores nessa área era de 1,7 milhão no terceiro trimestre de 2022. No fim de 2021, eram 1,5 milhão.

Outra descoberta relevante foi a de que, no Brasil, essas atividades são, na maioria das vezes, a única ocupação desses trabalhadores – e não um trabalho secundário que complementa a renda, como destacou o economista Leonardo Alves Rangel, pesquisador do Ipea e autor do estudo.

“Tem um debate internacional de que (trabalho em aplicativo) é a segunda ou terceira ocupação, para complementar a renda, mas 93% deles têm isso como única ocupação”, disse à BBC News Brasil.

Os outros autores da pesquisa são Anthony Teixeira Firmino, do IBGE, e os pesquisadores do Ipea Geraldo Góes e Felipe dos Santos Martins.

A Pnad Contínua, pesquisa do IBGE que serviu como base do estudo, não tem hoje perguntas específicas para identificar o número de trabalhadores em aplicativos.

Os pesquisadores precisaram filtrar os trabalhadores por conta própria e cruzar variáveis relacionadas a ocupação e atividade para chegar aos números de pessoas que trabalham com entrega de mercadoria e transporte de passageiros.

“A dificuldade principal é que, assim como outras pesquisas domiciliares do mundo que captam informações socioeconômicas, a Pnad Contínua não tem perguntas específicas para identificar questões contemporâneas como o trabalho em plataforma, teletrabalho, e outras formas não tradicionais de emprego”, explicou Rangel.

O que influencia autônomo a pagar INSS?

O aumento no total de trabalhadores nessa área desde 2016 (quando não chegava a 1 milhão) veio acompanhado por uma queda na parcela desse grupo que contribui com o INSS.

Vários fatores explicam por que um trabalhador autônomo contribui ou não com o INSS, e o principal deles é a renda, segundo Rangel, especialista em Previdência.

“Outro elemento que conta bastante é a escolaridade, que tem a ver com saber a importância de contribuir e com ter um histórico contributivo no INSS e não querer deixar de ser coberto pelo INSS. E também tem a idade – quanto maior a idade, maior a chance de contribuir sendo autônomo.”

Outros fatores são mais difíceis de medir, mas entram na equação, como a facilidade de uso do aplicativo do INSS, segundo Rangel.

Ele acrescenta o fluxo de dinheiro na conta de um autônomo também pode influenciar. Em vez de receber toda a remuneração em um dia, pode haver entrada e saída de dinheiro diariamente, dificultando um pagamento de uma quantia mais alta se a pessoa não se organizar para ter o valor na conta na data do pagamento para a Previdência.

Onde tem mais autônomo protegido pela Previdência?

A proporção de trabalhadores sem cobertura previdenciária varia entre as regiões, como mostra a pesquisa, e reflete a diferença de desenvolvimento socioeconômico entre as regiões – onde há maior renda média, há também maior proporção de contribuintes.

Na região Norte, menos de 10% dos motoristas e entregadores autônomos estão protegidos e, no Sul, 37% têm cobertura.

Por que a falta de adesão à Previdência é um problema para o país?

Além de destacar o desamparo do trabalhador que não tem proteção da Previdência Social, Rangel destaca que a baixa cobertura é também um problema para o país.

“Quando você tem um trabalhador protegido, diminui a chance da pessoa incorrer em uma situação de pobreza ou extrema pobreza”, diz.

“Imagina um trabalhador que ganha um ou dois salários mínimos por mês e, por qualquer que seja o motivo, ele não consiga trabalhar. Se não tiver alguém na família dele que consiga ajudá-lo, ele corre risco de não ter dinheiro para enfrentar as necessidades básicas do dia-a-dia.”

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem dito que o tema está no radar, mas ainda não explicou de que forma buscará resolver a questão.

Ao assumir o comando do Ministério do Trabalho na terça-feira (3/1), Luiz Marinho disse que dará prioridade à “regulação das relações de trabalho mediadas por aplicativos e plataformas, considerando especialmente questões relativas à saúde, segurança e proteção social”.

Isso será feito, segundo ele, “para assegurar padrões civilizados de utilização dessas novas ferramentas”.

O novo ministro afirmou que pretende apresentar uma proposta de regulação do trabalho por aplicativo no primeiro semestre deste ano – que fará parte, segundo ele, de uma reforma trabalhista “fatiada” que o ministério planeja enviar ao Congresso.

O plano de governo de Lula menciona que sua gestão vai revogar o que chama de “marcos regressivos da atual legislação trabalhista” e diz que vai propor “a partir de um amplo debate e negociação, uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas”.

As empresas procuradas pela reportagem disseram defender uma garantia de proteção social para os entregadores, mas destacaram a necessidade de levar em conta novas relações de trabalho (ou seja, um vínculo que não é CLT). Veja mais abaixo o que diz associação de motofretistas e como as empresas se posicionam.

Como garantir proteção social a trabalhador sem vínculo de emprego?

Rangel destaca que esse tema é “um problema antigo com roupagem nova”. “Informalidade e desproteção previdenciária no Brasil são um problema de décadas. Há desafios novos, principalmente por causa da intermitência do trabalho e a pessoa poder trabalhar em mais de um aplicativo, mas é um problema antigo.”

O pesquisador diz que o governo deve, primeiro, ouvir diretamente esses profissionais e que uma eventual proposta deve considerar que muitos deles demonstram que querem manter essa flexibilidade.

Uma possibilidade, segundo Rangel, seria fazer um desconto de contribuição previdenciária na fonte – ou seja, no valor que a plataforma repassa ao motorista ou motoboy parceiro.

E o que fizeram outros países?

Um fator que dificulta a comparação do cenário brasileiro com o de outros países nessa área, segundo Rangel, é que na Europa e nos Estados Unidos muitos desses trabalhadores têm as atividades de entrega ou transporte de passageiros como secundária, para complementar a renda de um trabalho principal, que já os inclui no sistema de proteção social.

Ainda assim, esse debate tem acontecido em diversos países. Um exemplo foi a exigência, pela Espanha, de que as plataformas contratassem os trabalhadores como seus funcionários – uma opção que não parece ter apoio no Brasil (veja abaixo avaliação de associação de motoboys e empresas do setor).

Em um exemplo mais próximo, o Chile aprovou uma lei pioneira na América Latina para regular o trabalho de aplicativo, que garantiu direito à Previdência. Mas, como destaca Rangel, ainda não há uma análise completa dos resultados.

‘Vaquinha’ para ajudar os colegas e o que diz associação

O presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), Edgar Francisco da Silva, o Gringo, conta que era comum ver vaquinhas entre colegas para tentar ajudar motoboys acidentados.

“A grande maioria não tem MEI, porque o aplicativo não exige, e os que têm foi porque o aplicativo exigiu em algum momento, porque senão também não teriam. E os que têm, às vezes, não pagam”, relata ele, que é motofretista há 22 anos.

Agora, segundo Silva, a associação faz um trabalho de recomendar que façam cadastro no MEI e, para os que precisam regularizar o cadastro, ajudam na negociação para parcelar a dívida acumulada.

Mas isso não é suficiente. Silva defende que os entregadores tenham cobertura previdenciária com desconto na fonte e que sejam respeitadas e fiscalizadas regras já existentes para evitar acidentes.

Ele reclama que não há fiscalização da Lei 12.009/09, que regulamenta a atividade profissional de transporte de passageiros e entrega de mercadorias com moto. Entre outros pontos, a lei prevê a aprovação em curso especializado e uso de colete de segurança com dispositivos retrorrefletivos.

“Gostaria que a lei funcionasse e que fosse implantada dentro dela a exigência da seguridade. Ou seja, só entra na profissão legalizado e, aí, tem a seguridade social. Assim, você está mantendo a pessoa viva e trabalha o desenvolvimento dela para entender como é um verdadeiro autônomo. Muitos eram celetistas e, de repente, se pegaram na situação de autônomo – não sabem guardar reserva, não sabem o valor correto a pagar, e acabam trabalhando por valores que ele trabalhava na CLT, mas sem os benefícios.”

A cobertura previdenciária para a categoria poderia ocorrer, segundo a sugestão dele, com desconto na fonte (no pagamento do aplicativo ao motoboy) e com diferentes opções de alíquota.

“Vamos supor que ele optou pela alíquota de 5% (do salário mínimo, R$ 66). Cada aplicativo que ele trabalhar vai descontando um pedaço, até atingir o teto. Ou 11%, 20%.”

E essa redução no valor líquido seria bem recebida pelos entregadores?
“A categoria acha qualquer desconto ruim. Todo mundo quer ganhar o dinheiro puro. Mas acho que, se bem explicado, se mostrar as consequências, as pessoas que morreram e deixaram suas famílias sem pensão, as pessoas que estão passando necessidade, seria mais fácil de entender.”

O presidente da associação diz que “há um otimismo com o novo governo”, mas afirma que os trabalhadores de aplicativos querem ser ouvidos diretamente.

O que dizem as empresas

A BBC News Brasil procurou empresas da área para perguntar o posicionamento delas sobre o tema.

O iFood respondeu que, “embora ofereça seguros e proteções aos entregadores – como para lesões temporárias, por exemplo -, é fundamental um diálogo amplo (com entregadores, governo e o setor) sobre a construção de um modelo que entenda as novas relações de trabalho e garanta proteção social e direitos para esses trabalhadores”.

A 99 respondeu por meio da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que também reúne empresas como iFood, Uber e Amazon. A Amobitec disse que suas associadas “reconhecem a importância da discussão acerca da inclusão previdenciária de motoristas e entregadores parceiros”.

Disse, ainda, que “estão abertas ao diálogo, dispostas a colaborar nas discussões com o governo e trabalhadores, considerando as premissas como flexibilidade e a autonomia, que caracterizam as novas relações de trabalho intermediadas por aplicativos”.

Em uma carta de princípios publicada em abril de 2022, a Amobitec defende que “a ampliação da proteção social não deve acontecer com base em regras antigas que não se adequam à realidade do trabalho em plataformas”. Também diz que o aumento da proteção não deve gerar “aumento significativo de custos para motoristas e entregadores, nem para o consumidor final”.

A Uber afirmou que “defende publicamente a inclusão dos trabalhadores por aplicativo na Previdência Social, com as plataformas pagando parte das contribuições de forma de reduzir o valor a ser desembolsado pelos parceiros”.

A empresa cita uma pesquisa do Datafolha com motoristas e entregadores, na qual “a maioria absoluta dos motoristas e entregadores de aplicativos no Brasil quer manter sua independência”.

Segundo esse estudo, quando perguntados se prefeririam ser classificados como “profissional que trabalha por conta própria” ou como “empregado registrado”, dois a cada três rejeitaram o vínculo empregatício.

O Rappi respondeu por meio do Movimento Inovação Digital (MID), que reúne mais de 150 empresas digitais. A nota defende que o debate deve ter duas premissas: “1) a pluralidade de aplicativos que conectam os parceiros; e 2) a escuta e participação no debate de sindicatos, associações representativas e os mais diversos prestadores de serviços”. E também argumenta que há uma “preferência da categoria por um conjunto amplo de direitos e garantias, em detrimento de coberturas oferecidas pela CLT”.


Clique para comentar

Faça um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

1 + 13 =