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Grileiros fraudam documentos virtuais para roubar terras indígenas na Amazônia, aponta levantamento

Cruzamento de bases de dados geoespaciais realizado pelo Estadão mostra, dia a dia, o avanço de fazendas sobre áreas que deveriam ser apenas dos povos da floresta.

Floresta absorve grandes quantidades de gases de efeito estufa que aquecem o planeta. (Foto:Reprodução)

A grilagem de terras avança agora de forma digital na Amazônia. Criado para centralizar informações sobre a vegetação nativa, o sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR) permitiu um “vale-tudo” na internet e se tornou uma ferramenta para a tomada de florestas e a invasão efetiva de territórios indígenas e da União. Nos últimos dez anos, o cadastro, que é autodeclaratório, se transformou em uma máquina rápida de produzir documentos oficiais que ligam grileiros a uma propriedade.

O mecanismo da grilagem digital atinge especialmente as terras indígenas com processos de homologação em fase inicial. Por meio de cruzamentos de bases de dados geoespaciais com milhares de registros do CAR, o Estadão identificou 325 fazendas registradas ilegalmente, entre 2014 e 2023, sobre cinco áreas que deveriam ser ocupadas exclusivamente por comunidades tradicionais da floresta.

A legislação diz que o CAR é válido enquanto os órgãos ambientais dos Estados não reconhecem a ilegalidade, ainda que as propriedades estejam flagrantemente sobrepostas a terras públicas. Como o poder público leva anos para analisar cada registro, o grileiro inscreve áreas virgens no sistema e consegue instantaneamente um documento oficial da terra. A demora na análise do cadastro dá tempo ao falsificador de se consolidar como proprietário de seu suposto imóvel. Apesar de não ter valor fundiário, o papel permite a fazendeiros, por exemplo, emitir guia para transporte de gado e até solicitar financiamentos.

As fragilidades tornam o sistema vulnerável aos falsificadores e prejudica o próprio mercado de terras e proprietários do País inteiro, uma vez que o cadastro não separa o proprietário real do falsário.

Alerta

Referência na pesquisa e no enfrentamento da grilagem de terras, a promotora Eliane Moreira, do Ministério Público do Pará, disse ser urgente a atualização no sistema do CAR que impeça automaticamente cadastros sobrepostos a terras indígenas ou áreas públicas. “É uma providência para ontem”, afirmou. “O problema é que o decreto que regulamentou o Código Florestal diz que, enquanto não for analisado o CAR pelo órgão ambiental, ele é válido para todas as finalidades previstas em lei. Para quem quer desviar ele acaba sendo muito útil.”

Doutor em Geografia Humana pela USP e pesquisador de conflitos territoriais na Amazônia, o professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) Maurício Torres destacou que grileiros negociam terras com o argumento de que elas estão “documentadas” com o CAR. “Na prática, alimentou-se um mercado. Vendem e compram terra grilada a partir desse documento, que é um documento oficial, mas sem lastro nenhum. É como você roubar um carro e o Estado permitir que você licencie o carro roubado. Ou que permita que você cadastre o carro para trabalhar como taxista ou Uber”, disse.

Sobreposição

O CAR é gerido pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB). No governo de Jair Bolsonaro, o SFB foi transferido do Ministério do Meio Ambiente para a pasta da Agricultura, o que motivou críticas de ambientalistas. Na nova gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, o serviço voltou a ser atribuição do Meio Ambiente, comandado por Marina Silva.

Em junho de 2020, Jalisson Parente decidiu que uma fazenda de 1,8 mil hectares dentro da terra indígena Pirititi, em Roraima, seria dele. Ele acessou o CAR e cadastrou o terreno como de sua propriedade. O espaço equivalente a 2,5 mil campos de futebol fica quase integralmente na porção norte da terra indígena. Filiado ao MDB, Jota, como é conhecido, admitiu que chegou à fazenda porque “estava atrás de terra”.

À reportagem, ele negou ter relação com o desmatamento no local e disse que só soube dos índios que ali habitavam posteriormente. “A gente estava atrás de terras, mas não levamos à frente”, disse. “Com os índios aqui em Roraima a gente não mexe. Até dei andamento, mas não tive interesse. Evitei o conflito”, declarou.

Outra evidência de fraude está em uma fazenda ainda maior ao sul do território pirititi. Com 2 mil hectares, a Fazenda Marinho foi inserida no CAR em 28 de maio de 2021 por um contador que vive no entorno de Brasília. Localizado pela reportagem, Eduardo Marinho negou ter propriedades em Roraima e negou ter feito o registro do imóvel em favor de algum terceiro.

“Certamente isso deve ser um erro, não tenho propriedade por lá”, disse. Quando questionado se tinha alguma ideia de como todos os seus dados pessoais estavam no cadastro e se pretendia tomar alguma providência, ele respondeu: “Não registrei nada, então nem vou ligar para isso”.

Xingu

O caso mais emblemático de expropriação de territórios de comunidades tradicionais em fase inicial de homologação está na região do Médio Xingu, no Pará. Mais de 90% dos 142 mil hectares da terra indígena Ituna-Itatá, entre os municípios de Altamira e Senador José Porfírio, estão, no papel, nas mãos de falsários.

Os mapas gerados pela reportagem a partir de dados do CAR mostram a profusão de lotes conjugados e de tamanhos parecidos, além de fazendeiros reivindicando os mesmos hectares. Para especialistas, a característica é um forte indicativo de grilagem e de disputas de posseiros. Dos 208 imóveis rurais registrados dentro da terra indígena, 69 têm mais de mil hectares – o equivalente a cerca de 1,4 mil campos de futebol, cada. O tamanho ajuda a traçar o perfil dos grileiros. Em vez de colonos e de pequenos produtores rurais, são ruralistas e especuladores imobiliários que se apossam de áreas protegidas.

A portaria que proíbe – ao menos formalmente – invasões na Ituna/Itatá perdeu a validade em 2021. Às vésperas do vencimento e sob a expectativa de o governo Bolsonaro não renovar a proibição, a derrubada de árvores alcançou recorde nos dois anos anteriores. O fim da restrição representaria a queda do último entrave às expropriações que, na prática, já ocorriam. O governo não renovou e a restrição formal só foi restabelecida em agosto de 2022, por decisão da Justiça.

Maurício Torres, da UFPA, disse que o CAR demanda conhecimento técnico para geração de dados cartográficos e envio de informações ao sistema, uma desvantagem aos povos da floresta. “É uma política pública, um registro cartográfico que só conversa na linguagem do expropriador. É inacessível aos indígenas que estão lá e que obviamente são quem os que têm o direito à terra. Ela se adequa à sanha expropriatória daquele que vem por cima, repetindo um movimento de violências, de expropriação, de grilagem, de desmatamento”, observou o professor.


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