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Governos do PT contribuíram para ascensão política das Forças Armadas, aponta estudo

O estudo aponta que a falta de uma política dos governos petistas para fortalecer a hierarquia civil sobre as Forças Armadas contribuiu para que os militares se sentissem à vontade para assumir maior protagonismo político nos últimos anos.

Lula e Dilma sempre nomearam civis para comandar Defesa, mas maioria dos cargos do ministério era ocupada por militares. (Foto: PR)

Os governos do PT, comandados pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rouseff (2011-2016), permitiram o aumento da militarização do Ministério da Defesa, representando uma “oportunidade perdida” de ampliar o controle civil sobre os militares.

Essa é a conclusão de um levantamento feito pelos professores Juliano Cortinhas (Universidade de Brasília) e Marina Vitelli (Universidade Federal de São Paulo), recém-publicado em artigo na Revista Brasileira de Estudos e Defesa.

Na avaliação da dupla, a falta de uma política dos governos petistas para fortalecer a hierarquia civil sobre as Forças Armadas contribuiu para que os militares se sentissem à vontade para assumir maior protagonismo político nos últimos anos, em especial nos governos de Michel Temer (2016-2018) e do atual presidente, Jair Bolsonaro.

Embora o Ministério da Defesa tenha sido criada em 1999, com o objetivo de ampliar a subordinação das Forças Armadas ao poder civil mais de uma década após o fim da Ditadura Militar (1964-1985), levantamento do professores mostra que durante as gestões petistas houve aumento do número de servidores militares ocupando cargos na pasta, com predomínio nas funções de maior hierarquia.

“Ao longo dos anos do PT, o ministério foi militarizado, com a entrada de mais militares em termos percentuais do que civis. Com isso, os militares controlam todo o processo de construção da política de Defesa do Brasil, o que é inadequado”, disse Cortinhas à BBC News Brasil.

A partir de dados do Sistema Eletrônico do Serviço de Informações do Cidadão (e-SIC), o artigo analisa a evolução do perfil dos servidores entre 2006 e 2016 (o ministério não disponibilizou dados de 2003 a 2005).

Os números revelam que houve um aumento de 60% nas posições do Ministério da Defesa (de 818 para 1309), mas o crescimento foi mais expressivo entre os cargos ocupados por militares.

“Waldir Pires (terceiro ministro da Defesa petista) assumiu (em 2006) um ministério com igualdade de cargos de civis e militares. Ao entregar a gestão, Aldo Rebelo (último ministro petista) deixou um órgão bastante dominado pelos militares, que possuíam 730 cargos exclusivos, enquanto o total de cargos que poderiam ser ocupados por civis era de apenas 530. O aumento no número de cargos civis foi de 42,1%, enquanto a elevação dos cargos militares foi de 77,5%”, diz o artigo.

Os dados indicam ainda que fenômeno foi mais intenso durante a gestão de Celso Amorim, diplomata que comandou a pasta na maior parte do primeiro mandato de Dilma. Ele assumiu o ministério “com 51,1% de cargos militares (453) e 48,9% de cargos civis (434) e entregou a gestão para (Jaques) Wagner com 54% de cargos militares (664) e 46% de civis (565)”.

Além do aumento de cargos exclusivos para oficias das Forças Armadas, o levantamento revela ainda que, ao longo das gestões petistas, militares da ativa e da reserva passaram a ocupar mais funções abertas aos civis. Com isso, o percentual de civis na composição do ministério, que era de 42,4% em 2006, caiu ano após ano, até chegar a apenas 35% uma década depois.

Os professores também dividiram os cargos do ministério em três categorias hierárquicas (posições de nível superior, intermediário e inferior) e constataram um predomínio dos militares no topo da gestão da pasta.

Entre 2006 e 2016, os oficiais sempre ocuparam mais de 65% dos cargos de nível superior ou intermediário – enquanto os cargos de nível inferior sempre tiveram predomínio civil (menos de 40% de militares).

Esse quadro, acreditam, reflete a falta de uma carreira civil estruturada dentro do ministério. A criação dessa carreira estava prevista na Estratégia Nacional de Defesa desde 2008, mas nunca saiu do papel.

Para os professores, o PT e a classe política em geral parecem ter subestimado o interesse dos militares em voltar ao poder no país, o que levou as gestões petistas a não priorizar o fortalecimento civil do Ministério da Defesa.

Isso, dizem, trouxe duas consequências negativas. De um lado, representa um risco para a democracia, na medida em que os militares se sentem mais à vontade para atuar politicamente. E, de outro, significa uma política de defesa menos eficiente, na medida em que a gestão das Forças Armadas acaba muitas vezes sequestrada pelos interesses corporativistas de cada uma delas (Exército, Aeronáutica e Marinha), em vez de ser conduzida por uma coordenação civil mais ampla.

Embora não tenha sido foco de análise do artigo, os professores citam ainda como outro aspecto da gestão petista que contribui para esse quadro o aumento do emprego de militares em atividades civis, como segurança pública, com as Operações de Garantia da Lei e da Ordem, ou em ações sociais, como distribuição de água no Nordeste (Operação Pipa).

“Os governos do PT simbolizam uma etapa da vida política brasileira no qual o Brasil já tinha passado vários anos de regime democrático e as Forças Armadas não tinham tanto poder sobre as autoridades civis. Então, era um momento mais propício para o sistema político impor a sua autoridade legal na política de defesa. Mas isso não aconteceu”, afirma Marina Vitelli, ao argumentar que houve uma “oportunidade perdida” nos governos Lula e Dilma.

“Se a gente tivesse construído as instituições necessárias para o controle civil naquela época, em que isso era possível politicamente falando, hoje provavelmente não teríamos os absurdos que estamos acompanhando no nosso dia a dia: excesso de militares no governo, muitos benefícios e super salários. Tudo isso tem relação com o fato de que não foi feito o dever de casa em tempos de um governo mais progressista”, também acredita Cortinhas.

O professor cita dados de outros países para ilustrar como o controle civil sobre as Forças Armadas é mais amplo em democracias consolidadas.

“França e Reino Unido têm Forças Armadas menores do que as nossas, são cerca de duzentos mil militares apenas, ou seja, quase metade do nosso contingente de 370 mil. Mas os ministérios da Defesa, tanto da França quanto do Reino Unido, têm mais de sessenta mil servidores civis, enquanto o nosso ministério da Defesa tem cerca de 1.500 servidores no total, sendo que dois terços são militares”, compara.

“Então, são estruturas de sessenta mil servidores construindo as políticas de defesa, fazendo os processos orçamentários. Quem define quais equipamentos as Forças Armadas vão ter não são as Forças Armadas, é o ministério da Defesa, porque esses equipamentos são projetados e planejados a partir das necessidades do país e não das necessidades de uma das Forças Armadas”, explica ainda.

‘Ministros tinham pouca autoridade sobre os militares’

Além de investigar a distribuição dos servidores no órgão, o artigo também analisa os perfis dos sete ministros que comandaram a Defesa nos governos petistas – José Viegas Filho (diplomata), José Alencar (político), Francisco Waldir Pires (político), Nelson Jobim (político e jurista), Celso Amorim (diplomata), Jaques Wagner (político) e Aldo Rebelo (político).

Os professores reconhecem que o cargo tem natureza política e é legítimo que não seja ocupado por um técnico da área. Mas apontam que nenhum dos que comandou a pasta nos governos do PT tinha conhecimento aprofundado em Defesa, o que, avaliam, comprometia sua legitimidade perante os militares, assim como sua capacidade de gestão.

Hoje coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional da UnB, Cortinhas acompanhou de dentro a política de Defesa no governo Dilma. Primeiro, atuou na Assessoria de Defesa da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2012 e 2013. E, depois, foi chefe de gabinete do Instituto Pandiá Calógeras, órgão de assessoramento estratégico do Ministério da Defesa, entre 2013 e 2016.

Diante da fraqueza da pasta, nota Cortinhas, o que se vê no país é uma grande autonomia de cada uma das três Forças (Exército, Marinha e Aeronáutica) e uma falta de coordenação da política de Defesa.

“São três burocracias e, por vezes, elas entram em conflitos orçamentários. E a tendência de alguém que não conheça profundamente a pasta, que não tem uma visão sobre o que são os militares e como eles devem agir no sistema político brasileiro, é ter dificuldade pra ser o árbitro dessas disputas. Então, temos um cenário muito ruim: um ministério fraco, com instituições fracas, e ministros com pouco conhecimento sobre o tema”, nota ele.

“Então, o Exército por exemplo coloca na Política Nacional de Defesa que a prioridade é a (proteção da) Amazônia. E aí o seu principal, mais caro projeto estratégico, é um veículo blindado, o Guarani. Não faz sentido. O que o blindado tem de relação com a Amazônia? E a gente não tem um ministro da Defesa que pergunte isso de forma séria, a gente não tem no Congresso pessoas preparadas também pra fazer essa (questionamento)”, acrescenta.

Apesar da crítica ao perfil dos ministros petistas, os professores reconhecem a importância de todos eles terem sido civis. Foi a partir do governo Michel Temer que a pasta passou a ser comandada por um militar, se afastando completamente do propósito inicial de executar o controle civil sobre as Forças Armadas.

Bolsonaro não só manteve a pasta sob controle de generais do Exército, como deu o comando de outros ministérios civis a militares. Até mesmo a Casa Civil, pasta que tem função de coordenar a gestão federal, foi por mais de um ano comandada pelo general Braga Netto, recentemente deslocado para chefiar a Defesa.

A estreita relação com as Forças Armadas tem gerado receio de que o presidente possa tentar algum movimento autoritário caso perca as eleições de 2022 — as pesquisas de intenção de voto apontam que hoje Lula lidera a corrida pelo Palácio do Planalto.

Bolsonaro tem indicado que pode não aceitar o resultado do pleito, por desconfiar da segurança da urna eletrônica, embora não exista qualquer prova de fraude envolvendo o sistema de votação atual.

“Na democracia, o ministro da Defesa representa o presidente na política de Defesa. Claro, vai ter um diálogo com as Forças Armadas, mas sempre com uma relação hierárquica, de cima pra baixo. E está acontecendo o contrário: quando você coloca o ministro da Defesa militar ele passa a ser o representante das Forças Armadas no governo. Isso é completamente fora da lógica”, critica Marina Vitelli.

Para a professora, qualquer presidente que suceder Bolsonaro terá como enorme desafio lidar com Forças Armadas tão fortalecidas. Se Lula realmente vencer, sua expectativa é que o petista buscará uma negociação.

“No curto prazo, você precisa negociar, só que no médio e longo prazo é fundamental pra democracia impor essa subordinação militar às autoridades civis. Mas tenho minhas dúvidas em relação até que ponto os partidos políticos entendem a relevância de impor esse controle civil. Então, a gente não vê indícios de que a situação vai mudar radicalmente mesmo com uma vitória do PT”, acredita.

Embora os governos do PT tenham sido marcados por aumento do orçamento das Forças Armadas e da presença militar no ministério da Defesa, a relação entre os dois lados terminou bastante estremecida, dado o inconformismo dos militares com a Comissão da Verdade, criada na administração Dilma para investigar os crimes da ditadura.

Celso Amorim questiona conclusão dos professores

Procurado pela BBC News Brasil, o ex-ministro Celso Amorim defendeu as gestões petistas da Defesa. Ele ressaltou que, em sua administração, buscou criar novas estruturas que fortalecessem o comando civil da pasta.

Foi o caso da Secretaria-Geral (SG), órgão ao qual ficaram submetidas as demais secretarias e que foi pensado para ser ocupado por um civil, servindo de contraponto ao Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. A partir da gestão de Aldo Rebelo, porém, a SG passou a ser comandada por militares.

Amorim citou também o Instituto Pandiá Calógeras, criado para assessoramento estratégico, com fortes laços com a academia, e integralmente ocupado por civis.

“Foram avanços pequenos, mas na direção certa”, defendeu o ex-ministro.

No artigo, os professores reconhecem esses avanços institucionais, mas consideram que seu impacto foi menos relevante diante do aumento da presença militar na pasta.

Sobre o fato de a carreira civil do ministério não ter saído do papel, Amorim disse que houve resistência no Ministério da Planejamento por questões orçamentárias.

O ex-ministro questionou as conclusões dos professores de que as gestões petistas contribuíram para o atual cenário de protagonismo dos militares no governo Bolsonaro.

“Dizer que os governos (do PT) não ampliaram o espaço dos civis e portanto os militares continuaram ocupando posições importantes na área da Defesa é uma conclusão. Agora, dizer que isso facilitou que eles passassem pra área civil, não tem absolutamente nada a ver. O Bolsonaro se cercou de militares porque são as únicas pessoas que ele conhece e nas quais ele acha que pode mandar”, argumentou.

Quanto ao uso frequente das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem, Amorim reconheceu que o tema “merecia uma certa revisão”, mas ponderou que os pedidos para uso dos militares na segurança pública costumavam partir dos próprios governadores, inclusive em momentos de greves de policiais.

As informações são da BBC Brasil.


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