Brasil
Golpe da venda de CNH: perfis irregulares prometem documento sem aulas e provas, em diferentes estados, diz site
A venda desse documento é crime, tanto para quem comercializa quanto para os que compram.
Anúncios de falsas autoescolas em diferentes estados do Brasil atraem clientes com a promessa de venda da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) sem que o candidato a motorista passe por aulas ou provas, requisitos exigidos por lei. A venda desse documento é crime, tanto para quem comercializa quanto para os que compram. Essa prática fraudulenta tem se espalhado por redes sociais, com diversas publicações anunciando o suposto serviço. Reportagem publicada no jornal Extra entrou em contato com perfis que fazem esse tipo de divulgação para descobrir como funciona o esquema fraudulento.
Em uma pesquisa sobre emissão facilitada de Carteira Nacional de Habilitação, no Facebook, a reportagem identificou oito anúncios que afirmam vender CNHs sem a necessidade de aulas e provas, publicados nos meses de agosto e setembro deste ano. Após o contato com todas as páginas responsáveis pelas publicações, quatro confirmaram as informações sobre os serviços fraudulentos.
Em contato por meio do WhatsApp com um número da Bahia, por exemplo, a atendente de uma dessas páginas cobrou R$ 2 mil pela emissão de uma habilitação de categoria B. O contato, que não se identificou, disse que atuava no Detran.
— Nós trabalhamos no administrativo do Detran, onde nos permite facilitar todo processo lhe isentando de se submeter a toda parte burocrática, como provas e aulas — informou ao EXTRA.
Para emitir a CNH, ela pediu o adiantamento de 50% do valor cobrado e a documentação do cliente.
Outro caso
Em uma outra página, o atendente pediu uma foto e a assinatura do suposto cliente durante o contato feito pela reportagem. O número usado por ele tinha o DDD de Minas Gerais.
– Referente ao nosso trabalho de habilitação facilitada, o condutor fica isento de provas, aulas e exames. Damos toda a aprovação de imediato ao condutor – informou o atendente.
O EXTRA entrou em contato com o Detran.MG, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
A oferta de CNH sem aulas e provas também aparece em dois perfis no Facebook que usam indevidamente o nome de um centro de formação de condutores de Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo.
“Compre agora a sua habilitação, sem aulas e sem provas. Compra totalmente segura. Enviamos para todo Brasil”, informou o falso atendente.
Após ver essas postagens na web, um aluno avisou aos responsáveis pelo centro de formação verdadeiro sobre o uso indevido do nome e de imagens da empresa. Com o alerta, o advogado da autoescola, Rodrigo Geraldo, ligou para o telefone disponível na página, a fim de descobrir quem estava por trás da fraude. Com a identificação dos perfis, o golpe foi denunciado à Polícia Civil na última segunda-feira (dia 2), como estelionato. A acusação foi registrada na 1ª DP de Ribeirão Preto.
— Eles criaram duas páginas no Facebook. Essa pessoa (administrador dos perfis) vende habilitações, diferentemente da nossa empresa, que oferece apenas cursos teóricos. Fizemos um boletim de ocorrência. Essa situação está nos prejudicando, pois as pessoas podem pensar que estamos envolvidos — afirmou o advogado Rodrigo Geraldo.
O EXTRA entrou em contato via WhatsApp com o falso atendente da autoescola de Ribeirão Preto. Quando a reportagem mencionou o anúncio de emissão facilitada da CNH, o suposto funcionário não respondeu mais. O telefone aparece como desligado ou fora da área de cobertura.
Táticas de falsificação do CNH
Em contato com um outro perfil, o atendente não identificado explicou de forma detalhada como funciona o esquema de falsificação da CNH. O número usado por ele era de São Paulo.
“Todo processo ocorre como se você tivesse cumprido todas as etapas normalmente, exames, legislação e direção. O seu processo é arquivado definitivamente em seu prontuário que ficará disponível para consulta no site do Detran. Iremos providenciar os laudos médicos, lista de presença na auto escola e aulas práticas. Portanto, você não terá nenhum problema ao renovar sua CNH, ou fazer adição de categoria”, explicou.
Procurado pela reportagem, o Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) informou que casos como este estão entre as denúncias recebidas pelo órgão e estão sendo fiscalizados. A autarquia afirma que promoveu 6.029 fiscalizações junto aos “agentes delegados ou regulados”, empresas e profissionais atuantes no setor, como desmontes, autoescolas, despachantes, estampadoras de placas, ao longo deste ano, até 5 de setembro. Desse total, 1.673 são Centro de Formação de Condutores – dos quais 80 foram fiscalizados no município de Ribeirão Preto. No mesmo período de 2023, o total de fiscalizados foi de 4.924, dos quais 1.273 de CFCs, 71 deles fiscalizados em Ribeirão Preto. O CFC Ponto Certo, segundo o órgão, passou por uma das fiscalizações de rotina no ano passado, sem maiores intercorrências.
De acordo com o Detran-SP, o comprometimento com a coibição de irregularidades no processo de obtenção e renovação da CNH é prioridade da autarquia, visando garantir a formação de motoristas mais conscientes, capazes de contribuir para a maior segurança viária no Estado. “Para isso, foram triplicadas as fiscalizações às autoescolas no último semestre. As irregularidades estão sendo coibidas também por meio de soluções tecnológicas. Atualmente, 98% das provas práticas de CNH são realizadas com auxílio de tablets, equipados com software de segurança para validações faciais e verificação de pontos e tempo de duração da prova durante o exame de direção. Também está em fase de teste para implantação a identificação biométrica com uso de liveness, a fim de garantir a realização de aulas teóricas e práticas pelos próprios candidatos, sem fraudes”, afirma o órgão em nota.
O Detran-SP incentiva toda a população a denunciar ações que não condizem com a prática correta. Caso o cidadão desconfie de algum local irregular, é possível denunciar ocorrências desse tipo no Disque Denúncia 181. O serviço é da Secretaria de Estado da Segurança Pública e o sigilo é absoluto. A denúncia também pode ser feita na internet, no site www.webdenuncia.org.br. Além disso, é importante destacar que qualquer denúncia de condutas irregulares ou indícios de corrupção nos serviços regulados pelo Detran-SP podem ser formalizadas através da Ouvidoria do órgão. Os cidadãos podem acessar o Fala SP (fala.sp.gov.br).
Em outro caso apurado pela reportagem, o atendente afirmou que entregaria a CNH em todos os estados e deu um prazo para a entrega do documento. O DDD usado por ele era do Ceará.
“Você não faz prova, baliza, legislação, psicotécnica e nenhum exame do Detran. E tem de um a 30 dias para receber (o documento)”, disse.
Em nota, o Detran.CE declarou que as informações do perfil são falsas, e que os procedimentos para agendamento e consulta de seus serviços são oferecidos por meio de seu site.
“O Detran-CE orienta aos usuários para ficarem atentos às tentativas de golpes, visto que o órgão não encaminha e-mail e nenhum tipo de link através de redes sociais ou aplicativos de mensagens, como WhatsApp”, esclareceu o órgão.
Riscos de compartilhamento de informações
A advogada Antonielle Freitas, especialista em Direito Digital, alerta que o compartilhamento de informações pessoais pode ser a porta de entrada para golpes contra os cidadãos que as repassam.
— Quando os interessados fornecem dados pessoais, como nome completo, CPF, RG, data de nascimento e fotos, essas informações podem ser usadas para diversas atividades criminosas, incluindo roubo de identidade e outras fraudes financeiras. Por exemplo, os criminosos podem usá-las para abrir contas bancárias fraudulentas, solicitar empréstimos em nome da vítima ou até mesmo cometer outros tipos de fraudes — adverte a advogada.
De acordo com um levantamento feito pela Serasa Experian, mais de 3,2 milhões das tentativas de golpes em transações financeiras foram com o uso de RG e CNHs, entre abril de 2023 e fevereiro deste ano. Os criminosos atuam de duas formas. Na primeira, adulteram um documento verdadeiro, sobrepondo uma outra foto de forma manual. Na segunda, recorrem à inteligência artificial para montar um documento falso.
Táticas diferentes
O advogado Estevão Melo, mestre em Ciências Penais, explica que os criminosos utilizam diferentes táticas para falsificar a CNH. A maneira mais antiga seria por meio da obtenção do papel-moeda utilizado para fazer o documento falso.
— Ele preenche com os dados da pessoa. Isso funcionou muito no passado, mas hoje não funciona com facilidade porque os sistemas estão interligados e on-line. E qualquer tipo de blitz que é feita hoje, os policiais estão conectados diretamente no sistema do Detran — afirmou o advogado.
De acordo com Melo, a segunda maneira seria com a emissão de um documento saindo de dentro do próprio Detran.
— Nesse caso, é necessária a participação de um agente público, de uma pessoa que trabalha ali dentro. Então, o agente vai inserir os dados, registrá-la como habilitada e entregar esse documento para ela. Mas, na verdade, essa pessoa (que solicitou a CNH) não foi submetida a nenhum tipo de avaliação nos centros de formação de condutores credenciados. E uma análise mais profunda do sistema, vai identificar isso — disse.
Na terceira forma de tentativas de falsificação, os próprios centros de formação de condutores que forjam a realização de aulas.
– A divulgação se dá no boca a boca, na abordagem de pessoas que têm interesse – concluiu Estevão Melo.
Aulas sem alunos e dedos falsos
No Estado do Rio, o Detran.RJ identificou nove condutas de possíveis tentativas de fraudes em centros de formação de condutores fluminenses, no ano passado. Os dados foram enviados pelo órgão com exclusividade ao EXTRA.
Cinco das inspeções apreenderam dedos de silicone nas autoescolas, que podem ser usados para registrar de forma falsa no sistema de biometria a presença de alunos em aulas de condução. Outros quatros casos foram de treinamentos abertos sem a presença de condutores, que são possíveis evidências das tentativas de fraudes.
Neste ano, houve apenas um registro de apreensão de dedos de silicone e aulas práticas sem aluno, em uma autoescola da Zona Oeste do Rio. O centro de formação de condutores foi fechado, e os responsáveis encaminhados à 35ª DP (Campo Grande) para prestar esclarecimentos. Os alunos envolvidos com a infração tiveram as aulas canceladas e poderão responder criminalmente.
— Quem se submete a esse tipo de fraude não é vítima. Também está praticando crime. O crime não é só o falsificar, mas usar o documento falso — alertou o advogado Estevão Melo.
De acordo com o artigo 304 do Código Penal, fazer uso de qualquer papel falsificado ou alterado é um crime com pena de dois a seis anos de reclusão. O documento do infrator pode ser retido.
Como os órgãos respondem às fraudes de CNHs?
No caso do Rio, o Detran.RJ esclarece por meio de comunicado que todas as denúncias são encaminhadas à sua corregedoria para averiguação. O órgão também informa que mantém no seu site um aviso com o título “Cuidado com os sites falsos – Alguns sites estão se passando pelo do Detran.RJ para coletar dados e aplicar golpes”.
“Para dar mais segurança e rapidez ao processo de primeira habilitação, o setor de Aprendizagem do Detran.RJ usa, desde fevereiro de 2023, uma tecnologia que exige o reconhecimento facial dos usuários que vão fazer as provas práticas de direção, através do uso de tablets. Além de reduzir a possibilidade de fraudes, o uso do tablet permite que o resultado do exame seja registrado em tempo real, de forma online, agilizando a emissão da carteira de habilitação”, explicou o Detran.
Já a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) disse, em nota, que adota diversas medidas para prevenir fraudes relacionadas à emissão de CNHs, como a integração de informações entre autoescolas e órgãos de trânsito. O órgão tem o serviço Fala.br, que oferece uma opção específica para acusações de irregularidades relacionadas à emissão de CNH e outras infrações. Eles garantem o sigilo e a apuração das informações fornecidas.
“A Senatran colabora com as autoridades de segurança pública para investigar e combater práticas fraudulentas. A Carteira Digital de Trânsito (CDT) é mais uma ferramenta que traz segurança ao processo e dificulta práticas ilegais”, afirmou a Senatran.
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