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Brasil

Crime organizado se expande na Amazônia e coloca em risco a preservação da floresta, diz ONG

Quase 60% da população da região vive em áreas controladas por facções, que mantêm diversos negócios ilícitos, do tráfico de drogas ao garimpo ilegal.

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Reportagem publicada pela revista Veja mostra que a menos de 3 quilômetros da prefeitura de Santana, cidade portuária no extremo norte do país, a Praça Fonte Nova, com seu campinho de futebol, barraquinhas de ambulantes e uma igrejinha ao fundo, já foi um animado ponto de encontro dos moradores do segundo maior município do Amapá, a 17 quilômetros da capital, Macapá.

Hoje, vive vazio — as pessoas evitaram circular pelo local onde ocorreram seis assassinatos em dois anos, alguns em plena luz do dia, testemunhados por crianças e jovens. Plantada na foz do Rio Amazonas, Santana, a cidade mais violenta do Brasil, situada no meio do fogo cruzado entre duas quadrilhas do Sudeste, o carioca Comando Vermelho (CV) e o paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), que ali se associam-se a gangues locais e travam uma guerra por domínio territorial. Infelizmente, não é o único.

Atuando no aspirador criado pela ausência do poder público, o crime organizado que apoderou-se da Amazônia, multiplicando a ameaça à floresta essencial para a biodiversidade e o equilíbrio climático do planeta e corrompendo o maior patrimônio brasileiro no âmbito internacional.

Uma das vítimas da matança em série na Praça Fonte Nova foi o vendedor Elielson da Cruz Lazané, 40 anos, executado com cinco tiros em janeiro por um homem que chegou de moto e fugiu em seguida. A suspeita é de que ele tenha sido morto no lugar de um parente que, segundo a polícia, teria ligações com o tráfico de drogas. “Aqui a gente vive com medo. Não sabe a que horas vai aparecer um bandido para matar alguém”, lamenta Rosana Lazané, 34 anos, irmã do vendedor. Além do temor onipresente, Santana chama a atenção pela pobreza que salta aos olhos — uma constante em todos os pontos dominados pelos criminosos. Dos 107.373 habitantes, quase 77 mil estão no Cadastro Único Federal, que congregam as famílias de baixa renda, e 55.117 vivem com até 218 reais por mês.

Como acontece nos municípios ribeirinhos, multiplicam-se por lá áreas miseráveis ​​de baixada ou ponte, como são chamadas as favelas de palafitas. É nesses bolsões que o crime se espalha, como constatou a reportagem de VEJA ao acompanhar uma operação policial. Em uma viagem pela Baixada do Ambrósio, há dois anos, Ana Júlia, 5 anos, morreu atingida por uma bala na testa, em meio à guerra de facções. “Tiraram a coisa mais importante da minha vida. É uma dor que não passa”, diz o comerciante Manoel de Souza, 47 anos, com lágrimas nos olhos.

Segundo os dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Santana registrou uma taxa de 92,9 mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes em 2023, índice quatro vezes maior do que a média nacional (22,8). O empresário Helderson do Rosário, 43, contou que seu irmão e o enteado foram atropelados por um carro de Uber que fugiu da polícia, com dois bandidos dentro. Já no chão, os dois foram executados por PMs. “Aqui tem a violência do crime e a da polícia”, diz. Em 2023, aliás, o estado foi recordista de mortes em ações policiais. “Não negamos que existam problemas, mas estamos concentrando esforços para resolvê-los”, diz o secretário de Segurança do Amapá, José Rodrigues Neto, que dobrou o efetivo em Santana (24 homens/dia) e tem feito operações frequentes na cidade. Embora os dados ainda sejam altos no local — trinta mortes violentas no primeiro semestre, 25 ligadas ao tráfico —, já houve uma queda de 52% em relação a 2023.

A instalação da bandidagem em municípios como Santana coloca em risco a própria preservação do maior bioma do planeta e, por tabela, da posição estratégica do Brasil na agenda global. “O futuro da Amazônia está mais ameaçado do que nunca”, alerta Renato Sérgio de Lima, diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O PCC e o CV se transformaram em verdadeiras participações na região.” Com dimensão continental e problemas na mesma proporção, a Amazônia Legal (Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso) é um campo aberto para a expansão oportunista do narcotráfico, que atravessa a fronteira e controla localidades na Bolívia e na Colômbia. “Na floresta, a lei do mais forte prevalência. Violentas e com poder financeiro, as facções veem ali a chance de acumulação de capital”, diz o geógrafo Thiago Sabino, do Instituto Mãe Crioula.

O papel dos negócios ilícitos tocados pelas quadrilhas vai muito além do tráfico de drogas. Há registros de sua atuação em garimpos ilegais, exclusão de madeira, grilagem de terras e tráfico de animais, entre outras leis que assolam o território. De acordo com o estudo Cartografias da Violência na Amazônia, 59% da população — 15,4 milhões de pessoas — vive em áreas sob domínio de criminosos ( veja o quadro ).

Ao todo, 22 grupos, entre brasileiros, bolivianos, colombianos e venezuelanos, atuam na Amazônia, embora o domínio dos asseclas do CV carioca e do PCC paulista seja notório: a marca de um ou de outro, às vezes às duas, está cravada em 168 das 178 cidades dominadas por bandidos. Outras oitenta são disputadas, sob execuções e tiroteios frequentes — entre elas, Santana. “Ao lado dos novos negócios, siga avançando a exploração da droga no varejo e a busca de novas rotas internacionais para o tráfico”, observa o sociólogo Rodrigo Chagas, da UFRR.

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A primeira impressão, ao pisar na cidade mais violenta do país, é de que se trata de um lugar comum, sem atrativos e castigado pelo crescimento desordenado. Para as quadrilhas, no entanto, ela ocupa posição estratégica, centrada no Porto de Santana, a porta de entrada e saída da região amazônica, pouco fiscalizada até recentemente. Capaz de receber grandes cargueiros e situado no ponto em que o Brasil fica mais próximo da Europa, da África, da Ásia e dos Estados Unidos, o porto tem potencial para se tornar uma central de distribuição de cocaína, skank (maconha mais potente), armas e ouro — só em 2023 seu movimento cresceu 48,1%.

Outro atrativo para traficantes e contrabandistas é o fato de uma área portuária viver coligada de embarques menores, recebidos de toda a Amazônia, o que dificulta seu controle. “As operações policiais são pontuais e não tenho poder para fiscalizar passageiros e bagagens. Mas saiba-se que aqui tem muita ‘mula’ com drogas”, afirma Jacqueline Andritson, administradora de um terminal de passageiros por onde passam 2 000 pessoas por dia.

O estopim para o alastramento das quadrilhas organizadas na Amazônia foi o assassinato, em 2016, do narcotraficante Jorge Rafaat, que controlava a chamada “rota caipira” (Paraguai-Bolívia-Brasil) e fornecia ao CV e ao PCC boa parte da droga vendida no país. O bando paulista apressou-se a ocupar o lugar de Rafaat e, diante disso, o CV carioca rumou para o norte, de olho na “rota Solimões”, move os barcos que saem da tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia. A divisão de áreas não durou muito — logo o PCC iniciou a caminhada na direção da segunda rota e, há três anos, acelerou o passo, motivado pela superprodução de cocaína na Colômbia e pelo enfraquecimento do combate aos crimes ambientais na gestão de Bolsonaro .

Foi nesse período que criminosos incomodados com as suspeitas levantadas pelo indigenista Bruno Pereira e pelo jornalista Dom Phillips sobre seus negócios na região contrataram matadores para tirar a vida dos dois, em um crime que repercutiu no mundo todo. “Houve uma transformação do crime aqui. Antes, entrávamos em qualquer lugar. Agora, somos recebidos a bala”, diz Rodrigo Agostinho, presidente do Ibama. “Os delitos se sobrepõem. Vamos apreender ouro e achamos drogados”, acrescenta.

O confisco de mercadorias de grande valor e banhos de sangue frequentes escancararam nos últimos meses a atuação das quadrilhas na Amazônia. Em junho de 2023, catorze pessoas foram mortas na Terra Indígena Yanomani, em Roraima — uma área dominada pelo PCC —, entre eles quatro bandidos que armaram uma emboscada para atacar uma equipe da Polícia Rodoviária e do Ibama. Ainda no ano passado, a partir da maior apreensão de ouro da história do Amazonas — 47 quilos, avaliados em 14,9 milhões de reais —, a Polícia Federal chegou a membros do CV enredados na extração ilícita de minerais no estado e no Pará.

Em paralelo ao entrelaçamento de delitos, o banditismo sofisticado seus métodos. Policiais do Amapá e da PF apreenderam, em abril, 154 quilos de cocaína escondidos por mergulhadores no casco de um cargueiro que partiu de Santana rumo à Europa. Estima-se que os valores movimentados com o tráfico de drogas no país, por ano, correspondam a 4% do PIB. Já a madeira extraída ilegalmente, somada à África Central e ao Sudeste Asiático, gera 100 bilhões de dólares anuais. “É evidente que o crime usa empresas fantasmas para lavar dinheiro e se vale da conivência de autoridades”, destaca o superintendente da PF Alexandre Saraiva, exonerado de um posto na Amazônia por denunciar irregularidades na gestão do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles .

Com 7 milhões de quilômetros quadrados, 60% no Brasil, a Amazônia vê o crime espalhando seus tentáculos. Tirando Manaus e Macapá, onde disputa território com o PCC, o CV controla sozinho e praticamente sem restrições boa parte das capitais da região — entre elas Belém, que receberá, em 2025, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30. “As facções usam uma lógica da máfia: onde há crime, temos que dominar”, explica o promotor Muller Marques Siqueira. Na capital paraense, mais da metade dos 1,5 milhão de habitantes vivem em favelas — a cidade é recorde nesse tipo de aglomeração.

VEJA esteve em alguns e constatou que, ao contrário do Sudeste, quase não se veem vigilantes armados nas entradas, mas a entrega de “estranhos” é monitorada passo a passo por motoboys. “A presença do CV começou a ser percebida aqui a partir de 2014, e hoje ele tem o monopólio do tráfico”, diz o sociólogo Roberto Magno, pesquisador do Laboratório de Geografia da Violência da Uepa.

O PCC, por sua vez, avançou pelo sul do Pará e ambas as quadrilhas apresentadas fartamente para a manipulação da floresta — no ano passado, o relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) dedicou um capítulo inteiro à conexão da bandidagem com os prejuízos ambientais na Amazônia. Outro levantamento, do Greenpeace, mostrou que, só no primeiro semestre, 417 hectares de desmatamento — 584 campos de futebol — foram registrados nas terras Kayapó, Munduruku e Yanomami, todas sob influência de traficantes. Sem a intenção de evitar a criminalidade, serão criadas novas diretorias da PRF, como polícias ferroviárias e hidroviárias federais. A iniciativa é um plano AMAS do governo, de prevenção e fiscalização da região, com 2 bilhões de reais de investimento.

“O combate ao avanço do crime organizado é nossa prioridade”, garante Humberto Barros, diretor da Amazônia e Meio Ambiente da PF. Um passo necessário — e urgente — para que a maior reserva ambiental do planeta não vire terra de ninguém.


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