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Conheça as histórias de Cosme e Damião, os irmãos mártires cultuados desde a Antiguidade

Estudiosos em religião e na história de santos são unânimes em afirmar que, por terem vivido há muito tempo, tudo que se refere aos dois é controverso devido à falta de documentação.

Os irmãos mártires Cosme e Damião fazem parte da galeria dos santos mais cultuados da Igreja Católica e com uma longa tradição que vêm da Antiguidade. Sua história remonta do século III depois de Cristo. Justamente pelo fato de terem vivido há tanto tempo, na falta de documentos históricos, tudo o que se sabe sobre eles está baseado na tradição oral, que vem sendo passada de uma geração para outra, desde então.

Data dos santos

Pela falta de comprovação documental, tudo que se sabe sobre eles é muito controverso e dá margem ao surgimento de várias versões. A própria data em que se celebra os santos é resultado da imprecisão histórica. Pela tradição católica, o dia da morte passa a ser a data do santo. Como não se sabe exatamente quando os irmãos mártires morreram, durante muito tempo a Igreja considerou 27 de setembro, levando em conta suposta data de início do culto a eles.

Porém, nos anos 1960, uma reforma no calendário da Igreja, promovida pelo Concílio Vaticano II, remanejou a data dos santos para o dia 26. A partir daí, o dia 27 passou a ser dedicado a São Vicente de Paulo, que morreu, comprovadamente, nesta data em 1660.

Tradição dos doces

Mas, para os umbandistas e as religiões de matriz africana, onde no sincretismo os santos são ibejis (entidades das crianças) foi mantida a data original, que para muita gente ainda é a que vale. É dessa relação, que surge outra tradição: a da distribuição de doces:

— A associação entre Cosme e Damião, doces e as crianças vem pelo menos desde o século XIX. Mas foi no século XX, com o surgimento da umbanda no Rio de Janeiro que os doces se tornaram protagonistas. Na tradição baiana, mais associada ao candomblé, o destaque continuou sendo o caruru (prato de origem africana, preparado com quiabo, camarão seco, amendoim e azeite de dendê) — explica o antropólogo Lucas Bártolo, do Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado (Ludens), do Museu Nacional.

Na Bahia, a tradição açucarada começou com a cocada. Ao chegar no Rio, foi acompanhando o desenvolvimento da cidade e, com o tempo, o saquinho foi ganhando adições, como o suspiro, doce de abóbora, pé-de-moleque, quebra-queixo. Só na década de 1960, quando surge a indústria da gelatina, é que a maria-mole ganhou espaço no grupo.

— O jeito de celebrar vai se adaptando às transformações da sociedade. As cidades sofreram verticalização com os prédios, a industrialização que trouxe novos doces, além da variável da violência que cria outros fluxos. Hoje em dia é comum dar doces de carro e pegar doces de carro — acrescenta o antropólogo.

Irmãos gêmeos?

O que se sabe de Cosme Damião é que eles eram irmãos e médicos, que tinham uma particularidade: pelo amor a Cristo não recebiam pagamento dos pacientes. O padre Vitor Pimentel, da Igreja de São Basílio e do Perpétuo Socorro, no Centro, e estudioso da história dos santos, explica que essa prática fazia com que os dois fossem integrados ao rol dos chamados “santos anargiros” (que têm aversão a dinheiro).

Embora os relatos deem conta de que Cosme e Damião fossem gêmeos, Pimentel diz que não há comprovação de que fosse verdade. Eles nasceram na Cilícia, onde hoje seria a Turquia e teriam tido mais três irmãos.

— Há uma tradição que diz que eles eram gêmeos, mas não tem comprovação. Há certos aspectos na história de vida deles que não ficam muito claras. Eram irmãos, sim, mas a forma mais tradicional de contar é de que também eram gêmeos — afirma o padre Pimentel.

Martírio e morte

Perseguidos pelo Imperador Diocleciano por praticarem curas milagrosas sem cobrar nada por isso, apenas em nome da fé cristã, Cosme e Damião foram mortos por volta do ano 300. A tradição conta que foram submetidos a várias formas de suplícios, como tentativas de morte por apedrejamento e flechadas que se voltaram contra os agressores. Por fim acabaram sendo mortos com golpes de espada.

— Uma das questões que fazem parte da tradição acredita-se que quando eles foram supliciados, torturados e mortos por amor a Cristo, por milagre todas as formas de suplício utilizadas contra eles não os afetava, então eles não eram machucados por fogo, água, etc. e tiveram de ser decapitados. Talvez venha daí também, desta lenda piedosa, a origem que perpassa o sincretismo também, a de santos que protegem contra os males. Além de curarem exercendo a medicina, também tinham dons espirituais de cura, ou seja, faziam milagres — explica o padre, acrescentando que os três irmãos mais jovens também foram perseguidos e mortos.

Culto e igrejas mais antigas

A mais antiga basílica, dedicada a Cosme e Damião, foi erguida no século 4, quando começou o culto aos santos, estimulada pelo Imperador Justiniano I, que atribuiu uma cura milagrosa aos irmãos. Em Roma, a primeira igreja dedicada a eles foi erguida pelo papa Félix IV. No Brasil, o primeiro templo foi construído na cidade de Igarassu, em Pernambuco.

Enquanto no Brasil segue firme a tradição ligada às crianças — é assim que os santos irmãos são retratados pelas religiões de matriz africana e a Umbanda — na Europa sempre foram considerados padroeiros dos médicos e farmacêuticos.

Transplante de perna

As artes plásticas representaram Cosme e Damião, ao longo da história, sob diversas situações. Um dos quadros, aproximadamente do século 16, retrata o suposto transplante de perna que os santos teriam feito.

— Um sacristão tinha uma perna enferma e sonhou que estava sendo operado pelos santos. Trocaram a perna pela de um mouro. Quando acorda, ele percebe a perna nova, e vai ao túmulo, e vê o cadáver sem a perna — conta o antropólogo Bártolo Lucas.

Filipe Domingues, historiador e professor da Universidade Católica de Pernambuco, essa é provavelmente uma das muitas histórias relacionadas aos santos que foram propagadas pela tradição oral. O padre Pimentel também acredita que essa seja uma das lendas piedosas relacionadas a Cosme e Damião.

— Se é uma prática difícil de ser feita nos dias de hoje, imagina naquela época — pontua Domingues.

A falta de documentação história, segundo Domingues, pode colocar em dúvida a própria existência de Cosme e Damião.

— É muito difícil comprovar a existência deles documentalmente, porque tudo que se sabe deles foi passado pela tradição oral — explica.

Tema de livro

A devoção a São Cosme e São Damião no estado do Rio viraram tema do livro “Doces Santos”, de autoria coletiva dos pesquisadores do Laboratório de Antropologia do Lúdico e do Sagrado (Ludens), do Museu Nacional. O PDF está disponível gratuitamente na internet.

O grupo também lançou, em 2021, uma exposição no Instagram sobre os santos e várias curiosidades. Em breve, a pesquisa vai resultar também num jogo de celular para cada um montar saquinhos de doces.


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