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‘Brasil será devastado se o aquecimento global sair do controle. E isso está perto de acontecer’, diz cientista do Inpa e Nobel da Paz

Às vésperas do início da Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-30) no Brasil, o cientista critica o governo brasileiro por não liderar as discussões globais para a redução das emissões e não dar a devida importância ao problema.

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O biólogo americano Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), é um dos maiores especialistas do mundo em temas sobre a Floresta Amazônica e as mudanças climáticas. Às vésperas do início da Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-30) no Brasil, o cientista critica o governo brasileiro por não liderar as discussões globais para a redução das emissões e não dar a devida importância ao problema. As informações são do jornal Estado de S. Paulo.

Segundo ele, o colapso da Amazônia teria impactos em todo o mundo, mas seria especialmente grave para o País. “O Brasil será devastado se o aquecimento global sair do controle”, afirmou o pesquisador, que ganhou um Nobel da Paz em 2007 junto com outros cientistas pelos esforços contra o aquecimento do planeta.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão:

O Brasil tem apresentado posições contraditórias diante do combate às mudanças climáticas. Vamos sediar uma COP em novembro e deveríamos estar à frente das negociações para redução das emissões. Mas parte do governo defende explorar petróleo na Foz do Amazonas e a construção de uma estrada cortando a floresta…

Obviamente o governo não é unificado. Tem o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, que tem posições claras de redução de emissões, mas praticamente todo o resto do governo está do outro lado. Os três ministérios com maior impacto no meio ambiente são Minas e Energia, Agricultura e Transporte, todos controlados pelo Centrão, que tem um longo histórico de não apoiar causas ambientais.

O senhor poderia exemplificar?

O Ministério dos Transportes quer construir a BR-319 (rodovia que ligaria Manaus a Porto Velho, passando pelo meio da Floresta Amazônica), com enormes impactos ao meio ambiente. O Ministério da Agricultura está subsidiando o plantio de soja e transformando áreas de pastagem em áreas de plantio de soja, o que é um dos grandes motores do desmatamento. O Ministério de Minas e Energia, por sua vez, quer explorar petróleo na Foz do Amazonas e em outros lugares do litoral. O Incra está legalizando ocupações de terras públicas não destinadas, outro grande motor do desmatamento; uma coisa que encoraja invasões, que não tem fim e só para quando chegar na última árvore. Essas áreas deveriam ser transformadas em unidades de conservação, como Lula havia prometido, mas isso não está avançando. O que está acontecendo no Brasil é muito grave. O País precisa conseguir realmente frear o aquecimento global. O Brasil será devastado se isso sair do controle, e está muito próximo de acontecer.

Por que o senhor diz que o Brasil será devastado?

Bom, outros lugares também serão devastados. Mas perder a Floresta Amazônica terá um impacto absurdo para quem vive lá, obviamente, mas também para todo o País, porque é a floresta que recicla toda a água que sustenta as grandes cidades (por meio dos chamados rios voadores), inclusive São Paulo, e toda a agricultura nacional. Tanto o agronegócio quanto a agricultura familiar. É bom lembrar que na seca de 2014 quase faltou água para beber em São Paulo. Será um desastre humano sem paralelo. O clima já mudou em parte do Brasil e a previsão é de que a situação piore. Neste momento, não há espaço para perdermos a água da Amazônia. Do melhor ao pior cenário, as estimativas indicam que podemos perder de 16% a 70% da floresta. Um outro problema, um grande elefante na sala que está sendo pouco discutido, é o aumento dos tufões na costa brasileira e a elevação do nível do mar. Várias pesquisas mostram que os oceanos estão subindo mais rápido do que se esperava e temos uma boa parte da população vivendo ao longo do litoral. Além de tudo isso, temos as surpresas climáticas, como a inundação do Sul no ano passado e a seca no Rio Madeira, eventos que não estavam previstos.

O Brasil deve assumir a liderança do debate climático, mas não há sinal disso. Voltando à questão da exploração do petróleo na Foz do Amazonas, existe alguma forma de isso ser feito de maneira sustentável, sem maiores impactos ao meio ambiente?

Não. Lembra que o último vazamento de óleo no Golfo do México durou cinco meses e houve várias tentativas fracassadas até que o vazamento fosse estancado. No caso da Foz do Amazonas, a profundidade é de quase três quilômetros, o dobro do Golfo do México. E a correnteza na foz também é mais complicada. A Petrobrás tem tecnologia e muita experiência para exploração de poços em águas profundas, mas não para tapar vazamentos nessas profundidades. Ninguém no mundo tem. E é uma coisa que pode acontecer; existe mesmo uma relação entre profundidade e ocorrência de todo tipo de acidente. E se houver um vazamento ali, o óleo pode alcançar oito países. É muito grave.

E do ponto de vista do aquecimento global?

Diante do aquecimento global, não tem lógica econômica para justificar a abertura de um novo campo de petróleo e gás. Isso porque para que um campo desse comece a produzir em nível comercial seriam necessários pelo menos cinco anos. Aí são necessários pelo menos outros cinco anos para pagar o investimento. E ninguém vai querer parar de produzir com zero de lucro, né? Então seriam ainda alguns anos de exploração. Muito antes disso o planeta já vai ter de parar de usar petróleo como combustível. Então, é totalmente ilógico para o aquecimento global. Além disso, o Brasil tem ainda muito petróleo em campos que já existem, em volume suficiente para usar até não precisar mais. O Brasil já exporta pouco mais da metade do petróleo extraído hoje. Esse discurso de que vai faltar gasolina é uma ficção total. Outra coisa: em 2021, a própria Agência Internacional de Energia soltou um relatório orientando os países a não abrirem nenhum novo campo de exploração de gás e petróleo. A orientação era usar os já existentes e começar a reduzir o uso paulatinamente até 2050. Outro argumento é que o País precisa de dinheiro para fazer a transição energética. Ou seja, vamos produzir mais petróleo para não usar mais petróleo? Isso não faz nenhum sentido. A transição energética deve estar no centro do governo, como educação e saúde, não apenas quando surge um dinheiro inesperado. É uma questão de interesse nacional.

No que diz respeito à transição energética, em que pé estamos?

Tivemos alguns avanços nas energias eólica e solar, mas há muitas preocupações. Temos um enorme potencial para uso de energias eólica e solar, somos um dos países mais sortudos do mundo em termos de opções energéticas que não seja combustível fóssil e hidrelétrica. Precisamos aproveitar esse potencial e não construir mais hidrelétricas. No que diz respeito à eólica, já temos tecnologia para fazer campos no mar, sem impactar dunas. Mas o que o Brasil está fazendo é produzir hidrogênio verde para vender para a Europa, para fazer a transição na Europa, enquanto o País continua usando gás para gerar eletricidade. Primeiro temos de fazer a transição para depois exportar o excedente, mas não é o que está acontecendo.

Como ter um agronegócio sustentável?

Tem muita coisa que dá para melhorar. A mais importante delas é não expandir mais a área, mas isso continua acontecendo, com a transformação de pastagens em áreas de plantio de soja, o que tem um impacto enorme sobre o desmatamento. Os pecuaristas vendem suas áreas de pasto para os plantadores de soja e vão para lugares mais afastados, dentro da floresta, comprando grandes áreas a preços mais baixos. A pecuária é um motor do desmatamento, mas isso vem escapando ao controle. Há um mito de que se aumentarem a produtividade vão parar de desmatar. Mas a economia não funciona assim. Quando algo dá lucro, você faz mais, não menos. Se o lucro aumentar, vão cortar mais florestas. É assim que as pessoas se comportam em uma economia de mercado.

A Amazônia agora enfrenta um novo problema crescente, o crime organizado. Como o senhor analisa mais esse desafio?

É muito grave e não há outra opção que não seja reprimir. É preciso tirar essas gangues de onde elas estão, mas não é isso que está acontecendo. Em Roraima, por exemplo, políticos locais apoiam os garimpeiros que estão nas terras ianomâmis. Os órgãos estaduais não são independentes, muitos estão comprometidos, é um problema grave. Somente Polícia Federal e Ibama tentam reprimir, mas não os órgãos estaduais.

A saída dos EUA do Acordo de Paris enfraquece muito o contrato. É possível reduzir emissões sem um dos maiores emissores? Quem vai liderar esse processo?

É gravíssimo os EUA terem saído, mas não dá para esperar que Trump saia de cena para começarmos a combater o aquecimento global, ou estamos fritos. O resto do mundo precisa começar a reduzir emissões agora e a COP é o espaço para isso. Acho que o Brasil deveria assumir a liderança desse processo mas, até agora, não há sinais disso, apenas discursos sobre a importância de reduzir emissões. Mas não é isso que o próprio País está fazendo. O Brasil está reduzindo o desmatamento pela ação do Ministério do Meio Ambiente, mas o resto, não. O País teria de liderar com exemplos, não apenas cobrar de outros países.

Temos tempo até a COP?

Espero que o presidente acorde. O problema é que ele vive no que chamo de espaço de desinformação, se cercou de pessoas que estão dizendo para ele que pode explorar petróleo, pode construir estrada, e é isso que ele segue fazendo, não escuta a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. É uma situação muito grave. Precisamos ver se alguém vai conseguir penetrar nessa blindagem que faz com que ele não receba informações sobre o problema climático.

O que podemos esperar da COP no Brasil?

Pode ser que não consigamos chegar a um acordo e sigamos para um desastre total, mas é importante não ser fatalista, ou isso vira uma profecia autorrealizável: “a COP vai fracassar”, “ninguém vai parar de emitir”. Não pode ser assim, precisamos manter a pressão para que as coisas mudem.

Dados divulgados recentemente pelo MapBiomas revelaram um aumento significativo no número de incêndios no ano passado. Quais as causas disso?

Tem várias razões, mas ano passado tivemos uma grande seca, e também no ano anterior, 2023. Esse é um fenômeno que está aumentando no mundo inteiro, secas que duram dois anos, não apenas um. E foi uma seca com duas causas, o El Niño, que provoca seca na parte norte da Amazônia, e o aquecimento das águas do Atlântico Norte, que provoca seca na parte sul da Amazônia. Quando as duas coisas acontecem juntas no mesmo ano, tem seca na Amazônia inteira, e essa situação climática leva a mais incêndios. Ao mesmo tempo, temos a degradação da floresta pelos madeireiros e pelos incêndios anteriores. A cada ano, incêndios matam muitas árvores dentro da floresta, isso vira lenha, madeira morta. Quando surge um novo incêndio, tudo queima com mais facilidade, com um fogo ainda mais quente, matando mais árvores. É um círculo vicioso.


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