Brasil
Águas de Alter do Chão, o ‘Caribe amazônico’, ficam turvas em meio a alta do garimpo no Pará
Geólogo diz que a melhor maneira de determinar a causa da água barrenta no Tapajós em Alter do Chão seria analisar o conteúdo dessa água.
Quem visita o distrito paraense de Alter do Chão costuma se deleitar com as águas límpidas e azuladas do Tapajós, que lhe renderam o apelido de “Caribe amazônico”.
Mas quem passou o último Réveillon no distrito – um dos principais destinos turísticos da Amazônia – encontrou algo diferente: as águas que banhavam as praias de areia clara estavam turvas e barrentas.
O fenômeno alarmou moradores e agências de turismo, que temem prejuízos à principal atividade econômica do distrito e à saúde dos residentes.
Eles citam temores de que a mudança na água seja uma consequência do aumento do garimpo no curso médio do Tapajós, o maior polo de mineração ilegal no Brasil. O garimpo contamina os rios com mercúrio, que pode provocar doenças neurológicas.
Imagens de satélite mostram que nos últimos anos houve um crescimento vertiginoso do garimpo de ouro no Médio Tapajós, região que fica a algumas centenas de quilômetros de Alter do Chão.
‘Resíduos nocivos à saúde’
“O Tapajós está morrendo!”, protestou no Instagram em janeiro a agência local de turismo Poraquê.
“Águas barrentas, cheias de resíduos nocivos à saúde, estão sendo despejadas sem piedade alguma”, completou a agência, atribuindo a lama à “mineração irregular de inúmeros garimpos ao longo do rio”.
Outras entidades publicaram queixas semelhantes.
Os primeiros alertas sobre a mudança na cor do rio foram feitos pelo médico Erik Jennings Simões e por Caetano Scannavino, coordenador da ONG Projeto Saúde e Alegria.
Ambos moradores de Santarém, município que engloba Alter do Chão, eles publicaram nas redes sociais no fim de dezembro fotos aéreas que mostravam o Tapajós com águas turvas. As imagens foram feitas de avião por Simões.
Scannavino, que mora na região desde os anos 1980, diz à BBC que nas décadas passadas as águas do Tapajós em Alter do Chão costumavam ficar barrentas por alguns meses ao ano – mas raramente já em dezembro.
O fenômeno é associado ao período de chuvas mais intensas, normalmente entre janeiro e março, quando perde força e as águas voltam a ficar azuladas.
Mas Scannavino diz acreditar que o garimpo está reduzindo a “janela de águas claras” no rio e cita dados sobre a explosão na atividade no Médio Tapajós. Esse aumento, segundo ele, tem sido estimulado por declarações e iniciativas do governo Jair Bolsonaro simpáticas a garimpeiros.
Em dezembro, a ONG Greenpeace divulgou o resultado de um monitoramento em rios que cruzam as terras indígenas Munduruku e Sai Cinza e desaguam no Tapajós.
Segundo o levantamento, desde 2016, o garimpo ilegal destruiu 632 quilômetros de rios dentro desses territórios.
O Greenpeace diz que o impacto equivale ao causado pelo rompimento da barragem em Mariana (MG), em 2015, quando 633 quilômetros do rio Doce foram afetados.
O garimpo ilegal está presente no Médio Tapajós desde ao menos os anos 1980. Hoje, porém, a atividade se mecanizou: retroescavadeiras facilitam o revolvimento da terra à margem de rios, abrindo grandes cicatrizes na floresta.
As áreas revolvidas ficam expostas, sem qualquer vegetação. As chuvas então levam a argila do solo para os rios.
Rios de diferentes cores
Mas será que a mesma lama do garimpo estaria por trás das águas turvas do Tapajós em Alter do Chão, distrito que fica a algumas centenas de quilômetros de distância dos garimpos ilegais?
Para o geólogo André Sawakuchi, professor do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), a mudança na cor das águas pode ter duas explicações.
Especialista em rios amazônicos, Sawakuchi afirma que há rios na região cujas águas são naturalmente barrentas (ou “brancas”, como se diz na região).
É o caso, por exemplo, do rio Amazonas, onde o próprio Tapajós deságua 30 quilômetros a leste de Alter do Chão.
Mas ele diz que todos os rios naturalmente barrentos da região nascem na cordilheira dos Andes, em áreas de relevo acidentado e pouca cobertura florestal. Quando chove nas cabeceiras desses rios, a argila do solo escorre para as águas, deixando-as turvas.
Há ainda rios amazônicos com águas naturalmente escuras, como o Negro, coloração que se deve à grande quantidade de matéria orgânica que eles acessam nas cheias.
Por fim, há os rios de águas naturalmente claras, que costumam nascer em áreas menos acidentadas, com solo arenoso e pouca argila.
É o caso do Tapajós e de seus afluentes, como o Jamanxim, o Crepori e o Ratão.
Hoje, no entanto, vários desses afluentes apresentam águas turvas o ano todo por causa do garimpo, diz Sawakuchi. O Tapajós também se torna mais turvo nos pontos de contato com esses rios.
Mas o geógrafo afirma que a lama do garimpo tende a decantar no leito do Tapajós antes de chegar a Alter do Chão.
Essa lama só poderia chegar a Alter do Chão, diz ele, se houvesse uma diferença entre as vazões do Tapajós e do Amazonas que permitisse à água do Tapajós avançar mais intensamente rumo ao Amazonas.
Por outro lado, um desequilíbrio das vazões em favor do Amazonas poderia fazer com que a água naturalmente barrenta do Amazonas avançasse até Alter do Chão – o que também explicaria a mudança na cor do rio.
“Quando o Amazonas está enchendo, ele invade o Tapajós. Essa invasão começa no período chuvoso (novembro) e pode ser mais ou menos intensa, dependendo da vazão do Amazonas”, diz Sawakuchi.
Neste ano, tanto o Amazonas quanto o Tapajós estão com níveis superiores às suas médias históricas.
Por isso, segundo Sawakuchi, a melhor maneira de determinar a causa da água barrenta no Tapajós em Alter do Chão seria analisar o conteúdo dessa água. Essa análise conseguiria distinguir a argila oriunda do Amazonas da lama proveniente de garimpo, diz o geólogo.
Não há notícias por ora de que alguma instituição ou entidade de governo esteja realizando essa análise.
Mercúrio no sangue
Ainda que a lama do garimpo não esteja chegando a Alter do Chão, uma pesquisa da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) indica que a população de Santarém apresenta altos níveis de mercúrio no sangue – o que pode ser um impacto da mineração ilegal no Tapajós.
Coordenada pela bióloga Heloísa Meneses, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Ufopa, a pesquisa revelou que 80% dos moradores de Santarém têm nível de mercúrio no sangue acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde.
O estudo já analisou amostras sanguíneas de cerca de 500 pessoas, com idade entre 18 e 80 anos.
Os resultados foram parecidos com os detectados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em um estudo com moradores do Médio Tapajós – esta, sim, uma região diretamente impactada pelo garimpo.
O mercúrio é usado para facilitar a aglutinação do ouro e, levado aos rios, pode contaminar microrganismos e peixes.
Outras possíveis fontes da substância, segundo a pesquisadora, são o desmatamento e as queimadas, que podem “ativar” o mercúrio inorgânico depositado no solo ou fundo dos rios, permitindo sua absorção pela cadeia alimentar.
A população é impactada pela substância principalmente por meio do consumo de peixes contaminados, segundo Meneses. E peixes contaminados numa região de garimpo podem se deslocar vários quilômetros até serem capturados e consumidos – o que põe em risco também moradores de regiões distantes dos pontos de contaminação.
Ela afirma que o mercúrio causa danos ao sistema nervoso central e, em grande quantidade, pode levar à morte. A substância também prejudica coração, rins e fígado, e pode contaminar bebês através da placenta.
Dependência do rio
Para muitos ribeirinhos que vivem à margem do Tapajós, no entanto, deixar de comer peixe não é uma opção.
Morador da comunidade Suruacá, que fica na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, a poucas horas de barco de Alter do Chão, Djalma Moreira Lima diz à BBC que os peixes são a principal fonte de proteína dos moradores locais.
“A nossa subsistência é peixe, mandioca, milho, feijão. A gente sobrevive desses alimentos”, afirma.
Lima diz que o Tapajós tinha águas claras quando ele chegou à região, em 1984.
“Você conseguia enxergar a até dois metros de profundidade. Tinha abundância de peixes, não precisava ir muito longe pra pescar”, diz.
Hoje, porém, afirma que há menos peixes e que o rio ficou “mais seco”. Segundo ele, a “terra que vem do garimpo” se assentou no leito e reduziu a profundidade das águas.
Ele afirma que em setembro, mês de menor vazão do rio, alguns barcos chegam a encalhar – o que não acontecia no passado.
Ele conta que, nos pontos de maior profundidade, o Tapajós costumava ser “quase preto, negro, um rio em que você gostava de tomar banho”, mas diz que hoje se notam “vários pontos brancos” nas águas.
“É como leite no café”, descreve.
A informação é do G1, com BBC Brasil.
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