Amazonas
Vale do Javari, no Amazonas, acumula mortes de crianças indígenas, falta de água e farmácia que parece galinheiro, diz Folha de S. Paulo
Os registros contemplam os últimos 13 meses e diferentes povos que vivem na região, inclusive comunidades de recente contato e que exigem proteção especial em razão da extrema vulnerabilidade imunológica contra doenças.
Uma série de crianças mortas por causas evitáveis, uma farmácia comparável a um galinheiro, mesas usadas como maca, falta de água potável e de medicamentos, surto de gripe e diarreia, além de doentes sintomáticos descumprindo quarentena e circulando normalmente pelas aldeias.
De acordo com uma série de documentos aos quais o jornal Folha de São Paulo informou ter acesso, esse é o cenário no Vale do Javari, no Amazonas, território com mais indígenas isolados no mundo.
Os registros contemplam os últimos 13 meses e diferentes povos que vivem na região, inclusive comunidades de recente contato e que exigem proteção especial em razão da extrema vulnerabilidade imunológica contra doenças como a gripe —que pode ser mortal nestes casos.
Informações preliminares do Ministério da Saúde apontam que 16 pessoas morreram no território de 1º de janeiro a 30 de setembro de 2024, sendo que 6 eram crianças menores de cinco anos.
Documentos obtidos pela reportagem mostram outros três óbitos infantis de outubro do ano passado até agora.
Procurado, o Ministério da Saúde do governo Lula (PT) afirmou que os dados sobre mortes “passam por qualificação para garantir sua precisão”, e por isso ainda não é possível divulgar números mais atualizados.
A pasta afirmou que orienta a manutenção de quarentena, aplica protocolos para evitar a contaminação por doenças, e “adota uma abordagem integrada” para impedir mortes evitáveis.
Segundo o ministério, de janeiro a setembro de 2024 foram registrados 1.197 casos de gripe no território, 462 entre menores de cinco anos.
A Terra Indígena do Vale do Javari é onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram assassinados em 2022, a mando de pescadores ilegais.
O episódio levou ao indiciamento de Marcelo Xavier, então presidente da Funai (Fundação dos Povos Indígenas) da gestão de Jair Bolsonaro (PL), e ilustra como o território virou alvo de invasores, que colocam em risco a população, inclusive as comunidades isoladas.
Em junho de 2024, a Funai realizou uma visita aos tyohom-djapas, de recente contato. Segundo os registros, a qualidade da farmácia local era tão ruim que é comparada pelos indígenas a um “galinheiro”.
O relato indica que o polo de saúde que deveria atender a comunidade não tem água potável, que precisa ser buscada nos igarapés. Não há freezer para armazenar vacinas.
Segundo o documento, os pacientes que aguardam atendimento no local, conta o documento não têm onde esperar e ficam sob sol e chuva. A maca para atendê-los é uma mesa improvisada.
Os registros mostram também que 90% dos cerca de 250 djapas da região estavam contaminados com filariose —doença transmitida por mosquito que é uma das principais causas do mundo de incapacidade.
Não havia remédio suficiente para tratar todos, diz o relatório, e alguns doentes permaneciam por dias com febre alta, dores musculares e dificuldade de andar, sem tratamento.
O documento encerra com o alerta de que mais indígenas doentes poderiam chegar nos dias seguintes, de outras aldeias, para buscar atendimento.
Como resume um memorando do Ministério Público, os indígenas enfrentam “problemas graves de saúde”.
“O Ministério da Saúde tem investido na melhoria da infraestrutura das Unidades Básicas de Saúde Indígena da região, ampliando recursos, insumos, medicamentos e equipamentos”, disse a pasta, sobre a situação dos djapas.
Situação semelhante vive um grupo de cerca de 150 korubos, grupo de mais recente contatado pela Funai.
Um ofício do Ministério dos Povos Indígenas, de janeiro deste ano e enviado à Saúde, dá conta de duas mortes de crianças por causa evitáveis desde outubro —um documento da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) protocolado no Supremo Tribunal Federal cita três.
O relatório do ministério relata ainda um quadro de possível surto de gripe e diarreia generalizada em uma população de “alta vulnerabilidade epidemiológica”.
O documento e também registros de visitas feitas à aldeia aos quais a Folha teve acesso apontam que a quarentena de isolamento não era aplicada devidamente.
O relatório cita, por exemplo, que um grupo foi internado no fim de dezembro de 2024 e, dois dias depois, “foi permitido que esse mesmo grupo retornasse às aldeias apresentando sintomas gripais, o que possivelmente, generalizou a transmissão viral aos demais indígenas”.
“[Os] óbitos decorrentes de causas evitáveis impactam profundamente a reprodução física e cultural e o futuro dos Korubo enquanto povo indígena. É preciso, em conclusão, máxima prioridade e cuidado especial”, diz o documento do ministério.
Agentes que atuam no Vale do Javari apontam para problemas graves na política pública, e que seria necessária uma intervenção para mudar os rumos da situação.
Diante deste cenário, uma série de lideranças de diversos povos da região assinou uma carta contra a coordenação regional da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) no local.
O texto fala em desvio de gasolina, comercialização ilegal de peixe e campanha política com uso de recursos da secretaria, e pede mudanças na gestão.
“Sobre as denúncias relacionadas à conduta de gestores ou servidores, estas seguem os trâmites administrativos e legais cabíveis”, afirmou o ministério.
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