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Amazonas

Juíza manda DNIT parar projeto de rodovia que rasgará parque na Amazônia, diz UOL

A estrada de 110,6 km projetada pelo governo de Jair Bolsonaro pretende rasgar a floresta ao atravessar o Parque Nacional da Serra do Divisor, perto da fronteira com o Peru.

Parque Nacional Serra do Divisor, no Acre. (Foto:Reprodução)

A juíza federal substituta da 1ª Vara de Rio Branco (AC), Franscielle Martins Gomes Medeiros, determinou nesta terça-feira (14) que o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) se abstenha de celebrar o contrato para elaboração dos projetos básicos e executivos de engenharia que são o primeiro passo para obras de abertura e asfaltamento de rodovia federal em uma região de grande interesse socioambiental na Amazônia brasileira. A estrada de 110,6 km projetada pelo governo de Jair Bolsonaro pretende rasgar a floresta ao atravessar o Parque Nacional da Serra do Divisor, perto da fronteira com o Peru. A informação é do UOL.

A juíza acolheu uma ação civil pública ajuizada contra a União, o DNIT e o Ibama por um conjunto de organizações não governamentais que denunciam o empreendimento pela “violação dos direitos socioambientais”, por “risco de extermínio” de povos indígenas isolados, ausência de consulta prévia aos povos indígenas da região, “relação desproporcional entre investimento público e beneficiários” e “improvável ligação” do trecho brasileiro com Pucallpa, no Peru, entre outros pontos.

A obra de prolongamento da rodovia federal BR-364, que ligaria Cruzeiro do Sul (AC) à fronteira com o Peru, ainda não está orçada, mas as entidades estimam o valor total de R$ 500 milhões a R$ 1 bilhão. Os estudos preliminares agora suspensos por ordem judicial custariam cerca de R$ 6 milhões. Procurado pela coluna, o DNIT não havia se manifestado até o fechamento deste texto.

A ação civil pública foi ajuizada pela Associação SOS Amazônia, OPIRJ (Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá), CPI-Acre (Comissão Pró Índio do Acre), Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e CNS (Conselho Nacional das Populações Extrativistas).

A ação se soma a um inquérito civil aberto no ano passado e atualmente em andamento no Ministério Público Federal a fim de “apurar as irregularidades na condução do projeto de interligação rodoviária entre os municípios de Cruzeiro do Sul, no Acre, e Pucallpa no Peru”. A apuração do MPF foi aberta após uma representação da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Acre.

Na ação civil pública, as entidades pediram que o DNIT fosse ordenado a não realizar qualquer procedimento licitatório antes da realização dos EVTEAs (Estudos de Viabilidade Técnica e Ambiental), da “consulta prévia, formal, livre e informada nos moldes do que determina a Convenção 169” da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e de trabalhos necessários da Funai “para confirmar a presença de povos indígenas isolados na área de influência do projeto da rodovia BR-364”.

DNIT alegou “segurança nacional” para dispensar estudos

Ao lançar o edital para contratação dos trabalhos preliminares, em maio último, o DNIT dispensou a elaboração dos EVTEAs sob a alegação de que a obra “se encontra em região de fronteira” e que por isso seria “considerada de interesse social e segurança nacional”. O DNIT citou uma lei da ditadura militar (nº 5.917/73), que criou o “Plano Nacional de Viação”, e um decreto de 1987 (nº 2.375), além de uma portaria do próprio órgão, de 2008.

“O argumento apresentado pelo DNIT para não apresentar os estudos e consultas prévios é um grande subterfúgio para fazer cumprir uma agenda política. É uma falácia. A ideia do governo é abrir campo para a ocupação de terra. É uma ocupação da Amazônia nos moldes dos anos 70. Mostramos na ação a total ausência de consulta aos povos indígenas que são afetados pelo empreendimento, por exemplo. E o risco à presença dos povos isolados na região do parque. Além das ameaças ao próprio parque, que tem uma biodiversidade única no país, é um dos poucos ainda intocados naquela região da Amazônia”, disse um dos advogados que atua no processo, Helio Wicher Neto.

As entidades mencionaram que a Constituição de 1988, posterior à lei da ditadura de 1973, conferiu grande importância à “probidade e o zelo com o erário”, que uma lei de 2011, que criou o “Sistema Nacional de Viação”, superou a lei da ditadura de 1973, e que a proteção da segurança nacional deve ser “sempre conjugada com os demais valores constitucionais”.

Wicher Neto disse que as entidades conseguiram demonstrar no processo que o governo do Peru não demonstra interesse em abrir uma ligação com o Brasil via Pucallpa e que as atuais ligações existentes entre os dois países já são suficientes para o comércio bilateral.

“Corre-se o risco de promover investimento público de milhões de reais para elaboração de um projeto de construção de uma estrada para conectar as cidades de Cruzeiro de Sul e Mâncio Lima a um ponto da fronteira entre Brasil e Peru sem qualquer ligação com o restante daquele país. […] O argumento de integração dos municípios no Estado do Acre não tem procedência. Os três municípios mencionados como impactados pela obra já estão interconectados e todos têm ligação asfáltica com a capital Rio Branco e o restante do país”, dizem as entidades na ação civil.

Juíza vê “fundada suspeita de incompatibilidade” com proteção ambiental Após analisar o pedido da coalizão de ONGs, a juíza federal Franscielle Medeiros determinou, além da suspensão dos trabalhos preliminares pelo DNIT, que o MPF seja ouvido. “Há risco significativo ao erário na efetivação de contrato destinado à elaboração de projetos básico e executivo, em valor superior a R$ 6 milhões, para a realização de obra de engenharia sobre a qual recai fundada suspeita de incompatibilidade com o regime de proteção de unidades de conservação estabelecido pela Lei n. 9.985/00. De outro lado, sustar a contratação, no aguardo da manifestação do Ministério Público Federal, ente investido

da proteção institucional dos interesses aqui controvertidos, não oferece significativo risco de abalo à ordem econômica ou socioambiental”, decidiu a juíza federal Franscielle Medeiros. A magistrada apontou que é “imprescindível” a manifestação do MPF no processo, pois tramita no órgão, desde 2020, o inquérito civil sobre o mesmo assunto. No entanto, “é iminente” a celebração de um contrato entre o DNIT e o consórcio das empresas vencedoras da licitação (Única-Iguatemi).

“Neste caso, aguardar a manifestação do Ministério Público Federal, ou mesmo a análise judicial das diversas nuances imbricadas no conflito que subjaz à presente demanda, tem o potencial de deflagrar a versão de montante expressivo de recursos públicos à empresa contratada, dando início à realização de levantamentos técnicos com a finalidade de elaborar projetos básico e executivo para a consecução de obra que poderá ser declarada incompatível com a adequada preservação ambiental.” A juíza citou a lei 9.985/00, “que condiciona a realização de qualquer intervenção em áreas de proteção integral – como é o Parque Nacional da Serra do Divisor – à aferição de sua compatibilidade, com o Plano de Manejo, sujeitando-se à análise empreendida pelo conselho consultivo da unidade e ao órgão gestor”.

Estudo apontou aumento do desmatamento a partir de rodovias

Citado na ação civil pública, um relatório técnico sobre “os impactos socioambientais da rodovia BR-364”, elaborado pelos professores da Universidade Federal do Acre Willian Flores e Sonaira Souza da Silva apontou que 96% de toda a área de influência do empreendimento são formados “por terra públicas da União, destinadas e não destinadas”. O dado é relevante porque, segundo o estudo, “em torno de 87% do desmatamento ocorrido até 2020 na Amazônia ocorreram em terras públicas não destinadas”.

“Além da devastação ambiental, estudos apontam o acirramento de conflitos e da especulação imobiliária, a partir da comercialização de terras de forma irregular dos assentamentos do Incra, com a presença das rodovias.”
No Acre, diz o estudo técnico, a abertura de rodovias tem desencadeado o processo de “espinha de peixe”, que “estabelece a ocupação do território a partir da abertura de ramais perpendiculares à rodovia principal”. “No Estado do Acre, as rodovias BR-364 e BR-317, após abertura e pavimentação, impulsionaram a expansão de extensa rede de ramais.” De 2007 a 2019, diz o estudo, “a média anual de abertura [dos ramais] foi de 590 km por ano”. “Um dado alarmante trazido pelo Relatório Técnico é que a situação do surgimento de ramais e de desmatamento no padrão espinha de peixe aumenta em momentos de enfraquecimento das políticas públicas. São, portanto, potencializados quando combinados com outras ações governamentais atualmente em curso.”.

A região, mesmo sem a estrada, já é palco de conflitos socioambientais, com exploração ilegal de madeira, garimpo ilegal, “aumento da violência, narcotráfico e crime organizado”. Em setembro de 2014, diz o estudo, “quatro indígenas, membros da Comunidade Nativa Alto Tamaya-Saweto, no lado peruando da fronteira, foram mortos por madeireira e traficantes, na fronteira com o Peru, quando se deslocavam pela floresta em direção à aldeia Apiwtxa, na Terra Indígena Ashaninka do Rio Amônia, localizada no lado brasileiro”.

Indígenas isolados serão “afetados diretamente”, diz ação

Segundo a ação civil pública, o “eixo projetado da estrada atravessa o Parque Nacional da Serra do Divisor (PNSD), Unidade de Conservação de Proteção Integral, criado pelo Decreto nº 97.839/1989 e que está incluído no programa ARPA (Programa Áreas Protegidas da Amazônia), a maior iniciativa de proteção de florestas tropicais do mundo, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente”.

Com 843 mil hectares, o parque da Serra do Divisor é apontado na ação “como uma das regiões mais ricas em espécies de toda a Amazônia Brasileira”. “Entre as espécies de alto valor para a conservação” encontrados na região estão “o tatu-canastra, a ariranha, a onça-pintada e o uacari-vermelho”. Entre os pássaros há “espécies notáveis por estarem ameaçadas” de extinção, como “a maracanã-de-cabeça-azul, o gavião-real, o gavião-pato, o bicudo verdadeiro e a mãe-da-lua-parda”.

As entidades retiraram as informações sobre os animais de um relatório realizado pelo próprio governo brasileiro em 2017, por meio do Ministério do Meio Ambiente, com o propósito de tornar o Parque Nacional da Serra do Divisor um Patrimônio Mundial da Unesco, vinculada à ONU (Organização das Nações Unidas). De acordo com a ação civil pública, o projeto da rodovia também vai interferir no “nas terras indígenas Nukini, Poyanawa e Jaminawa do Igarapé Preto”. O relatório técnico dos professores da Universidade Federal do Acre apontou uma população total de cerca de 18 mil indígenas no Peru e no Brasil na área de influência do empreendimento, considerando um raio de 40 km do eixo da rodovia.

“Existem ainda registros de grupos indígenas ainda não contatados, chamados ‘isolados’, que usam o território da linha de fronteira no Parque Nacional da Serra do Divisor no Brasil e Reserva Territorial Isconahua no Peru. Por esse motivo, essa área integra os chamados ‘corredores transfronteiriços dos isolados’ e será afetada diretamente pelo empreendimento”, diz a ação civil pública.

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