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Amazonas

Exames indicam que calor pode ter provocado mortandade de botos na Amazônia; ‘Os peixes estão sendo cozidos vivos’, diz cientista

‘Há sinais de colapso térmico nos cérebros dos botos’, explica pesquisador que atua numa força-tarefa para salvar os animais na região.

O clima extremo que fez da Amazônia fornalha espalha o desequilíbrio. Os símbolos evidentes são os botos-cor-de-rosa e tucuxis, mortos em massa no Lago Tefé, na cidade homônima do Amazonas. Os primeiros exames sugerem que sucumbiram ao calor. Mas não foram os únicos. As águas extraordinariamente quentes dos rios assolados pela seca cozinham tudo o que nelas vive. A temperatura elevada do ar faz sofrer fora d’água. Dentro dela, é pior. A água em vez de aliviar o calor, o amplifica. As informações são do jornal O Globo.

— Os botos mortos são os mensageiros de Tefé para o mundo de que a Amazônia, o reino das águas, agoniza de calor, excepcional mesmo para um lugar quente. Há sinais de colapso térmico nos cérebros dos botos — afirma o coordenador da área Geoespacial do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, Ayan Fleischmann, uma das lideranças da força-tarefa que reúne o ICMBio e outras instituições para salvar animais.

Mesmo em grandes rios, como Solimões e Madeira, a temperatura da água alcança valores superiores às que a maioria dos peixes tolera. Não raro está a 38C graus. Superior à água de chuveiro num banho quente ou a encontrada em fontes termais.

A Amazônia é água. Tem a maior concentração de água doce da Terra (20%), o rio mais volumoso (o próprio Amazonas) e a maior concentração de rios gigantes, como o Negro, o Madeira, o Juruá e o Purus, todos afetados pela seca. Suas florestas são usinas de chuva e umidade para toda a América do Sul.
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O bioma que tem a maior diversidade de peixes do mundo, com 2.700 espécies descritas, se tornou um inferno. Não é verde. É pardo, cinza, marrom, da cor das águas apodrecidas, dos animais mortos e da vegetação queimada.

— Os peixes estão, literalmente, sendo cozidos vivos, em águas cuja temperatura superou o limiar que podem suportar — afirma Adalberto Val, cientista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e considerado um dos maiores especialistas do mundo em peixes de água doce.

Val lembra que é uma tragédia de animais e humanos. Pois, 90% da proteína consumida na Amazônia vem dos peixes.

Estudos liderados por Val já mostraram que os peixes amazônicos têm grande sensibilidade à temperatura. Eles vivem muito perto de seu limite térmico. Não suportam quando a temperatura da água sobe 1°C ou 2°C. A temperatura crítica máxima para um peixe amazônico é de 38°C a 40°C. Mas muitas espécies têm tolerância menor e sucumbem quando a água chega a 35°C.

— Minha equipe tem medido de 32°C a 38°C em muitos pontos da Amazônia. Tem sido frequente encontrar 38°C — lamenta o cientista.

No Lago Tefé, em 29 de setembro, quando houve a maior mortalidade de botos, a água estava 39,1C. Mas quase não havia peixes. E a suspeita de pesquisadores é que eles tenham se deslocado em busca de alívio. Mas na Amazônia dos rios rasos e quentes não há para onde fugir.

O grupo mais sensível à elevação da temperatura da água é justamente o maior e mais importante para a vida e a economia da região. Trata-se do vasto grupo dos Characiformes, que compreende 37% das espécies de peixes conhecidas da Amazônia.

Esse grupo inclui o tambaqui (Colossoma macropomum), o matrinxã (Brycon amazonicus e B. cephalus) e o curimbatá (Prochilodus), importantes para a pesca e a psicultura. Fazem parte ainda piranhas, traíras, pacus, lambaris, piabas, curimatãs e jaraquis.

— Este ano a água passou de todos os limites da temperatura crítica máxima. E a vítima mais visível é o tambaqui. Ele evoluiu para se adaptar a um mundo hostil, quente. Mas o que enfrenta agora é brutal — frisa Val.

Por milhões de anos, os tambaquis têm sido salvos pela boca, uma adaptação evolutiva a ambientes extremos. Esses peixes, uma das principais fontes de comida e renda das comunidades ribeirinhas, desenvolveram lábios que se expandem quando há pouco oxigênio. Com isso, captam o gás vital e escapam da morte em águas empobrecidas.

Mas nas águas quentes deste ano, o que era salvação virou armadilha e tornou os tambaquis ainda mais vulneráveis a morrer, literalmente cozidos, pois, em vez de oxigênio, absorvem mais calor. Na Amazônia em agonia pela tortura do clima, agora os tambaquis morrem pela boca.

Os tambaquis estão entre os peixes mais consumidos na região. Mas não são apenas as pessoas que dependem deles. O tambaqui é um jardineiro da Amazônia. Ao consumir mais de 140 tipos de frutos silvestres amazônicos diferentes, ele espalha sementes e planta florestas.

Val diz que as formas de vida que fazem da Amazônia a floresta mais biodiversa evoluíram para sobreviver no limite. Mas, agora, adaptações que garantiam a vida podem os levar para a morte.

Val explica que quando os peixes são submetidos à temperatura crítica, entram num estado chamado LOE (sigla para perda de equilíbrio em inglês). Passam a nadar de lado ou de barriga para cima. São sintomas mais evidentes de distúrbios metabólicos profundos, com degradação de proteínas e enzimas. O calor literalmente destrói os peixes de dentro para fora.

Os peixes são ainda mais vulneráveis do que os mamíferos porque não regulam a temperatura do corpo. Quando a água esquenta acima do nível crítico, entram em distúrbio metabólico e morrem.

Os mamíferos, como os humanos e os botos, possuem mecanismos como a vasodilatação para tentar se livrar do excesso de calor. O coração faz o sangue circular mais depressa. Mas isso aumenta a pressão sanguínea. Em casos extremos pode provocar derrame cerebral.

— Vários dos botos mortos tinham derramamento de sangue no cérebro. Não se pode dizer neste momento que morreram somente disso. Mas é um sinal típico de morte por calor — observa Val.

Os exames feitos nos botos mortos ainda não ficaram prontos e não se sabe se alguma biotoxina presente na água, inclusive devido ao calor, possa ter matado os animais. Mas é consenso que a temperatura elevadíssima da água está ligada em algum grau à maior mortalidade de botos-rosas e tucuxis que se tem registro.

Estudos liderados por ele na primeira década deste século alertaram que elevações da temperatura da água teria efeito devastadores sobre os peixes amazônicos. Algumas projeções indicam que um terço das espécies poderá se extinto se persistirem condições de clima extremo, como o deste ano. A tragédia de 2023 se encaixa à perfeição ao cenário de tendências climáticas

— Este ano, a floresta, os peixes vão se recuperar, os botos também. Mas à custa de muito sofrimento. É preciso de uma coalizão mundial para salvar a Amazônia porque a tendência é que este ano não seja um evento isolado. O futuro é quente — salienta Val.


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