Amazonas
Análise mostra que aldeias da Amazônia tem a maior distância de acesso para leitos de UTI
A distância das aldeias do interior da Amazônia a leitos de UTI pode chegar a mais de 1000 km. Na maior parte dos municípios amazônicos não existe nenhum respirador pulmonar.
Uma análise realizada pelo portal de notícias InfoAmazônia revelou que as aldeias da Amazônia Legal estão, em média, a 315 km de um leito de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS). Mais da metade (58,9%) das 3.141 aldeias analisadas pela reportagem está a mais de 200 km de distância de uma UTI. A maior parte delas, entre 200 km e 700 km de distância. E em 10% das aldeias, a distância está entre 700 km e 1.079 km.
As informações são resultado do cruzamento de dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde com a localização das aldeias amazônicas disponibilizadas no Sistema de Cadastro de Aldeias (SisAldeia) da FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Essa base é um mapeamento colaborativo, não uma coleta de dados oficial, e não contém todas as aldeias amazônicas.
“As pessoas das comunidades remotas têm uma situação muito difícil. Algumas vão demorar de oito a dez dias para chegarem até aqui, na sede [do município], em São Gabriel da Cachoeira“, afirma Marivelton Barroso, do povo Baré, presidente da Federação das Organizações do Rio Negro (FOIRN).
A situação da cidade no noroeste do Amazonas, que tem 45 mil habitantes, a maioria deles indígena, é uma das mais críticas da região. Desde sábado (9 de maio), a prefeitura decretou lockdown, o bloqueio total de serviços não essenciais, até o dia 19.
As comunidades indígenas do município de São Gabriel da Cachoeira estão entre 700 km e 1.079 km de um leito de UTI do SUS. A aldeia Punya é a mais distante de um leito de UTI em toda a Amazônia. Em linha reta, ela está a 1.079 km do Hospital Geral de Roraima.
A distância linear é apenas hipotética porque, na floresta, o deslocamento vai depender do acesso e tipo de transporte que será utilizado e, também, da disponibilidade de leitos dos hospitais e da organização do sistema de saúde em toda a região. No caso de São Gabriel da Cachoeira (AM), todos os doentes graves, tanto da cidade quanto das aldeias distantes, são removidos para a capital do Amazonas, apesar de ser um pouco mais longe. A infraestrutura de atendimento de saúde aos indígenas em Boa Vista, Roraima, é toda reservada para os Yanomami.
Segundo os dados do Ministério da Saúde, os municípios da Amazônia Legal tinham em março 1.325 leitos com UTI Adulto e UTI específica para Covid-19 disponível para o SUS (em 108 estabelecimentos de saúde). Como as unidades de terapia intensiva disponíveis estão principalmente nas capitais, e já estão sobrecarregadas, principalmente as de Manaus, a chance de perder a viagem, ou ter que ficar do lado de fora dos hospitais de alta complexidade esperando por um leito, é grande. Não basta ter a UTI, ela precisa estar disponível.
Casos graves da Covid-19 também significam falta de ar para o paciente e, portanto, a imediata necessidade de um respirador, para ajudar o ar circular pelo pulmões. Os dados também revelam que esse é um dos grandes gargalos do acesso à saúde indígena na Amazônia.
O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena é organizado em Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), sob responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde. Apesar dos DSEIs organizarem toda a atenção à saúde dos indígenas aldeados,o atendimento exclusivo para indígenas é apenas de baixa complexidade e portanto não inclui nenhum respirador ou leito de UTI, que devem ser compartilhados com a população geral atendida pelo SUS. O atendimento aos indígenas que vivem nas cidades é feito nas estruturas de saúde municipais e estaduais – fora do subsistema indígena.
Concentração de respiradores
A Amazônia Legal conta com 6.157 respiradores e ventiladores pulmonares, 4.760 deles disponíveis no SUS em 675 estabelecimentos de saúde, de hospitais a ambulâncias. Desse total, quase 8% estavam fora de uso, segundo dados de março de 2020 do Ministério da Saúde. A análise do InfoAmazonia considera todos os respiradores existentes no SUS.
Mais da metade (58,3%) dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) da Amazônia Legal tem menos de 50 respiradores em suas áreas de abrangência. Há casos ainda mais dramáticos. O distrito indígena do Vale do Javari, com mais de 6 mil indígenas em 85 mil km2, o distrito Yanomami, com quase 27 mil indígenas em 96 mil km2, e o distrito do Médio Rio Purus com 10,7 mil indígenas e 187 mil km2 não têm nenhum respirador. O que faz com que os indígenas destas regiões precisem se deslocar para outros municípios, na abrangência de outros distritos sanitários. Fluxo perigoso, que indica um rápido saturamento do sistema, caso a demanda passe a ficar mais alta.
Os equipamentos vitais para a oxigenação dos pulmões estão concentrados em poucos locais. A maioria dos municípios da Amazônia (66,5%) não tem nenhum respirador para uma população total de mais de 8 milhões de habitantes e 203 mil indígenas, segundo dados do IBGE divulgados em 2020.
Um indígena Yanomami da aldeia Maturacá, localizada perto do Pico da Neblina, na divisa do Brasil com a Venezuela, terá que viajar quase três horas de avião para chegar até Boa Vista se precisar de uma UTI com respirador. Não existe ligação por terra, e nem fluvial, com a capital de Roraima.
Uma segunda opção seria uma viagem de seis horas de voadeira até São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Mas a cidade mais indígena do Brasil, em que até o prefeito foi contaminado pelo novo coronavírus e passou cinco dias internado em um hospital particular de Manaus, não tem leitos com UTI e pertence a outro distrito sanitário, o DSEI Alto Rio Negro, que é responsável por centenas de aldeias de outras etnias.
“Nosso medo é o coronavírus entrar pelos garimpeiros. Eles entram e saem livremente. Não estamos seguros, precisamos que os garimpeiros sejam retirados [do nosso território]”, afirma Junior Hekurari Yanomami, presidente do Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena) Yanomami e Ye’kuana.
Sobre o acesso à saúde, o líder indígena afirma que o DSEI Yanomami está trabalhando forte para que o isolamento dos indígenas continue funcionando. “Temos um plano de contingência, que segue os protocolos do Ministério da Saúde e da SESAI em relação aos casos leves, graves e muitos graves da Covid-19″, explica o representante Yanomami.
Apesar de estar confiante no plano montado, o presidente do Condisi afirma que, como nas áreas indígenas não há estrutura suficiente para atendimento aos casos mais graves, todos os eventuais doentes atingidos de forma mais severa pela Covid-19 terão que ser deslocados para a capital, Boa Vista. “As remoções terão que ser feitas para as unidades na capital. Temos um hospital do exército, provisório, construído em Boa Vista”, diz Junior.
“A preocupação é muito grande. Temos muitas comunidades como a Parafuri, a Surucucu e a Parima, entre outras, que só têm ligação aérea com a capital”.
Só um helicóptero
O relato destas regiões amazônicas evidencia um dos grandes problemas que os indígenas vão enfrentar caso a blindagem às áreas rurais e às aldeias não funcione totalmente, a necessidade de deslocamento rápido entre grandes distâncias. A assistência à saúde indígena tem uma estrutura totalmente peculiar. O atendimento básico, sob responsabilidade de cada DSEI, é feito nos chamados Polo Base e nas Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI) que funcionam dentro ou perto das aldeias. São as equipes de saúde que vão até a população do interior.
É nessa linha de frente, por meio de divulgação boca a boca, radiofonia e via mensagens de áudio, entre os locais que dispõem da internet, que estão circulando as informações sobre a pandemia e sobre quão vulneráveis são as aldeias indígenas.
Nos casos graves, o deslocamento vai ser sempre necessário. O que significa, em alguns casos, como entre as aldeias mais distantes na região do Rio Negro, mais de uma semana de viagem, se a via escolhida for a fluvial.
“O DSEI Alto Rio Negro tem um único helicóptero. A SESAI, já faz um tempo, está travando um pouco a questão de termos um pequeno avião”, afirma Marivelton Barroso. Segundo o líder indígena Baré, a situação em São Gabriel da Cachoeira, onde já existe quase uma centena de casos confirmados da Covid-19, é emblemática. “Aqui não há estrutura suficiente para tratar os casos de Covid. Precisa de mais respiradores. Não temos leitos de UTI. As remoções terão que ser feitas para Manaus. Por isso é preciso ter sempre um deslocamento aéreo disponível”, afirma Marivelton.
Segundo ele, outro problema que a região enfrenta é a baixa quantidade de testes rápidos para identificar casos da doença causada pelo novo coronavírus nas aldeias. “Temos até agora por volta de 180 testes”, diz. Segundo ele, a atenção básica, que estava melhorando um pouco, não está sendo continuada por causa da pandemia. “A vulnerabilidade é muito grande. Até agora, por exemplo, não temos um hospital de campanha em São Gabriel”. O hospital do município, que é administrado pelo exército e conta com 07 ventiladores pulmonares, ficou com estoque de oxigênio muito baixo nos últimos dias. Foi preciso solicitar uma remessa urgente de cilindros cheios, que vieram de Manaus.
O quadro que mostra um alto grau de vulnerabilidade das aldeias indígenas será colocado a prova nas próximas semanas, quando a curva da doença em todo o Brasil tende a subir mais, segundo previsão dos especialistas que estão acompanhando a pandemia no Brasil. Apesar de autoridades indígenas do governo federal afirmarem que o acesso à saúde está garantindo, tanto problemas pontuais, quanto grandes gargalos no sistema, podem aparecer de forma muito rápida.
Kokama mortos
Nos últimos dias, indígenas de Tefé, no Médio Solimões, reclamaram que membros da equipe de atenção básica da saúde indígena, que apresentavam sintomas gripais, frequentaram comunidades da região. Na aldeia Sapotal, em Tabatinga (AM), dois indígenas do povo Kokama morreram com suspeita de Covid-19 no início de maio. Mas existiriam mais dezenas de pessoas contaminadas. Problemas iguais a esse, a partir de agora, podem dar início a transmissão comunitária da doença em muitas aldeias.
“Não existe SAMU indígena. Não dá para ligar para os bombeiros e chamá-los para ajudar. Sem meio de transporte para emergência, mas com recursos para alugar horas de vôo e pedir ajuda à aeronáutica, as aldeias vão ficar dependendo da disponibilidade destes serviços. A questão dos meio de transporte é sim mais uma vulnerabilidade”, afirma a demógrafa Marta Azevedo.
Segundo a pesquisadora do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (NEPO/Unicamp), que é uma das autoras do estudo Análise de Vulnerabilidade Demográfica e Infraestrutural das Terras Indígenas à Covid-19, outra vulnerabilidade importante ocorre especificamente no estado do Amazonas, que só tem leitos de UTI na capital Manaus. Para Marta, a montagem de hospitais de campanha em cidades do interior, como em São Gabriel da Cachoeira, com infraestrutura para atender casos graves, seria uma boa solução. Ela defende que cidades do interior tenham leitos de UTI com respiradores para que o acesso à saúde seja descentralizado.
A reportagem do InfoAmazonia questionou a SESAI sobre esses casos específicos, e também sobre os planos de remoção dos indígenas para casos graves que ocorram nas aldeias, mas não obteve resposta do governo federal até o fechamento desta reportagem.
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