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Brasil

Site mostra histórias de viciados em apostas online: “R$ 200 mil em dívida e depressão”

Jogadores compulsivos contam seus dramas com apostas esportivas e cassinos online; Veja como identificar o vício.

‘Fortune Tiger’ está cada vez mais presente nas redes sociais Foto: divulgação

Pelo menos duas pessoas por dia entram em contato com o gerente de acolhimento Marcelo Palácio, da clínica terapêutica Casa Despertar, em Aquiraz-CE, em busca de orientação para tratamento relacionado ao vício em apostas online. São os próprios dependentes que reconhecem o problema ou seus familiares que pedem auxílio para lidar com este tipo de compulsão. As informações são do site einvestidor do Estadão.

Os casos chegam de todo o País, com pessoas que já torraram todo o dinheiro que tinham em mãos em roletas, “jogos de foguetinhos” e palpites esportivos. E mesmo após destruírem suas vidas financeiras, não conseguem parar sem ajuda.

“A dependência por apostas é semelhante à dependência química. O vício faz com que a pessoa coloque a vida em risco, pegando dinheiro emprestado com agiotas para apostar”, afirma Palácio. “Quando o jogador ganha, sente aquela dopamina, uma sensação de prazer parecida com a produzida pelo uso de entorpecentes. Quando perde, tem a mesma depressão e ressaca moral que a droga traz”, explica.

O aumento da procura por tratamento para vício em apostas on-line (esportivas ou não) pode estar relacionado com o recente salto de popularidade das casas de jogos de azar, ou “bets”, como são conhecidas. Na rede social Facebook, por exemplo, um dos maiores grupos de apostadores foi criado há menos de dois anos e já conta com 99 mil membros.

As propagandas com as marcas das casas de apostas também estão por todos os lugares. Essas empresas patrocinam os times de futebol da série A do Campeonato Brasileiro, possuem comerciais na TV aberta e contam com a ajuda de conhecidos influenciadores digitais para impulsionar o conteúdo voltado ao segmento. Felipe Neto, que possui 17,2 milhões de seguidores somente na rede social Instagram, por exemplo, já fez publicidade para o site Blaze, que oferece apostas esportivas e jogos de cassino.

Apostas são proibidas no Brasil?

Cassinos físicos são proibidos no Brasil, entretanto essas empresas conseguem operar on-line no País, mantendo as sedes no exterior. Já as apostas esportivas serão regulamentadas via medida provisória (MP) que ainda passará pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “A MP estabelece que as empresas de apostas deverão promover ações informativas e preventivas de conscientização de apostadores e de prevenção do transtorno do jogo patológico. A iniciativa visa a garantir a saúde mental dos apostadores, evitando que as apostas se transformem em um vício”, afirma nota do Ministério da Fazenda.

De qualquer forma, já há uma grande facilidade de acesso do brasileiro às apostas, sejam esportivas ou de cassino. E isso faz com que até mesmo menores de idade, cujo acesso deveria ser proibido em ambos os casos, consigam jogar. Segundo Palácio, chovem casos de jovens entre 14 e 20 anos que apresentam comportamentos compulsivos.

“O problema cresce na era dos telefones celulares, uma vez que a tecnologia possibilita apostar 24 horas por dia, 7 dias por semana, por meio de cassinos virtuais móveis. Tenho visto, com tristeza, o crescimento do problema em meu consultório, tanto em número de clientes quanto em valores apostados”, alerta Ana Paula Hornos, psicóloga clínica e educadora financeira. “Os jogos de aposta preferidos entre os jovens brasileiros são as esportivas on-line, que são mais viciantes.”

O psicanalista Michel Nogara, psicólogo e doutor em psicologia clínica pela PUC/SP, também notou o aumento da procura por tratamento em seu consultório. Pelo menos 30% dos seus pacientes jogam compulsivamente. Ele conta que essas pessoas geralmente apresentam um quadro de angústia pregressa. “Cada pessoa é singular, mas geralmente todo comportamento compulsivo significa uma espécie de fuga da vida”, afirma.

Apostas sem controle

O funcionário público Murilo Castro, em tratamento psicológico e psiquiátrico há cinco meses, conhece bem o sofrimento das perdas com apostas. Entre 2017 e 2022, perdeu dinheiro com plataformas de daytrade e em diversas bets esportivas ou na modalidade de “cassino on-line”. Hoje ele acumula uma dívida de R$ 200 mil, fruto dos vários empréstimos feitos para apostar ao longo desse tempo.

O nome deste personagem viciado em apostas foi alterado para evitar que sofra represálias, preconceitos ou prejuízos materiais e físicos.

A relação com os jogos de azar de Castro começou no conhecido jogo do bicho, após a mudança do Maranhão para o Rio de Janeiro, em 2006. Nesta época, ele estima ter perdido cerca de R$ 40 mil com as jogatinas. Em 2009, Castro mudou-se para a Brasília e, sem encontrar máquinas caça-níquel à disposição, permaneceu “sóbrio” até 2017, ano em que as plataformas on-line de apostas e de daytrade já ganhavam tração no País.

Naquele ano, o funcionário público também sofreu uma grande decepção financeira: ele havia participado de um processo seletivo que renderia ganhos mensais de R$ 60 mil, mas não foi aprovado. “Eu não não soube lidar com essa situação e procurei uma outra forma de ter retorno”, afirma Castro. O caminho que ele escolheu, ganhar dinheiro com daytrade pela plataforma Olymp Trade.

Sem uma base sólida em educação financeira, Castro utilizou a plataforma de daytrade como uma casa de apostas. Por sorte, conseguiu fazer um lucro de R$ 900 nos primeiros dias e, impressionado com o rendimento, utilizou todo o limite disponível que tinha em dois cartões de crédito para engordar os tradings. Juntos, os dois cartões disponibilizavam para ele R$ 13 mil. “Eu comecei a perder. No final, eu usei todo o meu limite para depositar na plataforma. Depois, peguei empréstimo consignado e mudei para outro site porque vi que não estava ganhando nada”, relata.

Day trade vicia?

Rodrigo Cohen, analista de investimentos, planejador financeiro e co-fundador da Escola de Investimentos, afirma que daytrade não é uma aposta, mas a estratégia de investimento pode, sim, viciar e levar a comportamentos impulsivos e nocivos.

“Ver o dinheiro aumentando e diminuindo na tela, em quantidades por vezes muito altas e de forma rápida, pode fazer o investidor perder a cabeça. Infelizmente, é possível viciar com toda a adrenalina do processo”, diz Cohen. “Se você começar a se desviar da estratégia de trade e do planejamento financeiro, só para tentar ver o dinheiro subir a todo custo, pode ser que esteja viciado”, afirma.

Após sair da Olymp Trade, o refúgio seguinte do funcionário público foi a BetFair, uma das maiores casas de apostas com atuação no Brasil. A primeira jogatina ocorreu na modalidade cassino, e como é comum de ocorrer, gerou lucros iniciais. Um depósito de cerca de US$ 10 se tornou US$ 200. Castro sacou esse dinheiro e continuou apostando, tanto nos jogos de roleta quando na aposta esportiva, até começar a perder novamente e se endividar ainda mais.

“Em uma noite eu ganhei US$ 907. No outro dia, quando estava no meu trajeto do trabalho para casa, me deu uma vontade muito grande de aumentar aquele valor. Aí eu resolvi apostar e perdi tudo”, afirma Castro.

Depois da Betfair, ele ainda utilizou uma série de casas de apostas e cassinos digitais, como o Spin Palace e Brazino777. A compulsão era tão grande que ele não conseguia sacar os valores na conta nem quando tinha sucesso nas apostas. “O meu emocional não deixava. Quando eu solicitava o saque, havia 24 horas de processamento. Nesse período, o dinheiro fica ali, disponível para ser apostado e eu sempre apostava, não conseguia chegar até o saque”, afirma. “Estourei minha margem de consignado e todo dinheiro que entrava era para o jogo, só fui me afundando cada vez mais. E toda possibilidade de refinanciamento daquele empréstimo, eu fazia.”

Sem conseguir mais crédito com os bancos, ele passou a pedir empréstimo a amigos e agiotas. “Antes das eleições do ano passado, no início outubro, me deu uma ansiedade tão grande que eu gastei todo o meu pagamento em apostas. Peguei dinheiro emprestado com um colega para cobrir esse gasto e fiquei devendo bastante. Em novembro, aconteceu a mesma coisa, só que eu peguei ainda mais emprestado. E em dezembro eu tinha R$ 15 mil de pagamento e todo esse dinheiro foi para pagar as pessoas que eu devia. O que sobrou, joguei tudo”, conta Castro.

A avalanche financeira só parou quando a esposa do funcionário público o confrontou e o incentivou a pedir ajuda. Desde janeiro deste ano, Castro está em tratamento psicológico e todo o pagamento que recebe é encaminhado para a conta da esposa. “Minha mulher acabou ‘jogando junto’, indiretamente, e adoecendo também. Para suprir a falta da minha parte do dinheiro em casa, ela também pegou empréstimos”, diz.

Atualmente, existem casas de apostas que utilizam ferramentas para bloquear ou suspender usuários que demonstrem um comportamento compulsivo. Entretanto, Castro afirma nunca ter sofrido nenhum tipo de intervenção.

Apostas e o fim do casamento

Se Castro já tinha algum histórico de compulsão quando começou a apostar, o também funcionário público Fernando Sá (também nome fictício para proteger a fonte) nunca tinha passado por uma situação parecida. Ele conta que começou com as apostas há cinco anos na Bet365, como uma forma de fazer renda extra para compensar um golpe no qual foi vítima. Na época, recorreu ao banco para comprar um veículo e revender o carro pela internet. No entanto, no negócio, entregou o veículo ao comprador mas não recebeu o dinheiro – e ainda precisou continuar pagando o empréstimo.

No início, conseguiu fazer alguma renda com apostas esportivas, cerca de R$ 1 mil ao mês. Depois, começaram os desfalques. “Eu não conseguia perceber, mas cheguei a perder até R$ 3 mil em um dia”, afirma. “Quando eu ganhava, comprava algo para a minha casa e, quando eu perdia, achava que as coisas estavam ruins financeiramente por conta do golpe que havia levado do carro.”

O casamento dele não resistiu à compulsão pelos jogos, que o fizeram acumular uma perda de cerca de R$ 60 mil, além dos empréstimos feitos no período para bancar as apostas. O estopim para procurar ajuda aconteceu em meio a uma crise.

Sá relata ter sofrido uma paralisia no lado esquerdo do corpo e, após se consultar com o médico, foi encaminhado para o setor de psicologia. “O médico disse que eu estava em depressão e não era nada muscular, físico. Quando comecei a terapia, consegui analisar ponto a ponto os fatores que me fizeram chegar a essa situação”, afirma. Até a última quarta-feira (31), Sá estava há 13 dias sem apostar.

Como saber se sou viciado em apostas?

O vício em apostas on-line e jogos de azar é mais difícil de ser identificado do que a dependência por químicos, quando geralmente ocorrem mudanças físicas no indivíduo. Muitas vezes, como nos casos acima, a identificação só vem quando as graves consequências financeiras começam a ficar evidentes e a afetar a dinâmica da família.

Entretanto, há muitos sinais para identificar um processo compulsivo. Palácio, da Despertar, lista alguns comportamentos importantes, como efeitos na vida financeira, acordar pensando em apostas e checagens muito frequentes na tabela de jogos.

O psicólogo Nogara também detalha algumas características de jogadores adictos. A primeira, a falta de controle e a obsessão pelas apostas. “O maior interesse na vida desse jogador é apostar. Como o alcóolatra, que só pensa no próximo gole, o jogador adicto pensa na próxima aposta”, afirma. “Existe ainda o jogador patologicamente otimista, que sempre acredita que vai ganhar e não vê que o contrário é que acontece.”

Outra característica, a incapacidade de parar de apostar quando está ganhando. “É frequente ver esses jogadores afirmarem que estão apostando pouco, mas em algum momento esse jogador passa a recorrer montantes mais altos, o que está ligado ao prazer que sente ao apostar, a emoção”, ressalta Nogara.

Um grupo de apoio bastante conhecido entre jogadores compulsivos é o Jogadores Anônimos (JA). No site do grupo, também são listadas 20 perguntas para ajudar a identificar a compulsão. Caso se identifique com as questões abaixo, procure ajuda.

1 – Você já perdeu horas de trabalho ou da escola devido ao jogo?
2 – Alguma vez o jogo já causou infelicidade na sua vida familiar?
3 – O jogo afetou a sua reputação?
4 – Você já sentiu remorso após jogar?
5 – Alguma vez você já jogou para obter dinheiro para pagar dívidas ou então resolver dificuldades financeiras?
6 – O jogo causou uma diminuição na sua ambição ou eficiência?
7 – Após ter perdido você sentiu como se necessitasse voltar o mais cedo possível a recuperar as suas perdas?
8 – Após um ganho você sentiu uma forte vontade de ganhar mais?
9 – Você geralmente jogava até que seu último centavo acabasse?
10 – Você relutava em usar o “dinheiro do jogo” para as despesas normais?
11 – Alguma vez você já vendeu alguma coisa para financiar seu jogo?
12 – Você já pediu dinheiro emprestado para financiar seu jogo?
13 – O jogo o tornou descuidado com seu bem-estar e o da sua família?
14 – Alguma vez você jogou por mais tempo do que planejava?
15 – Alguma vez você já jogou para fugir das preocupações ou problemas?
16 – Alguma vez você já cometeu, ou pensou em cometer um ato ilegal para financiar o jogo?
17 – O jogo fez com que você tivesse dificuldades para dormir?
18 – As discussões, desapontamentos ou frustrações fizeram com que você tivesse vontade de jogar?
19 – Alguma vez você já teve vontade de celebrar alguma boa sorte com algumas horas de jogo?
20 – Alguma vez você já pensou em se autodestruir como resultado do seu jogo?


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