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Amazonas

Ministério acelerou acesso ao ‘app da cloroquina’ em meio a crise de oxigênio em Manaus

Emails mostrando mobilização para lançar o TrateCOV constam de inquérito da PF que investiga supostos crimes de Pazuello.

Cloroquina. Medicamento sugerido pelo aplicativo TrateCOV. (Foto Ueslei Marcelino/Reuters)

Trocas de emails internos do Ministério da Saúde revelam uma mobilização da pasta para deixar pronto, com urgência, o acesso ao aplicativo que recomendava cloroquina, ivermectina e azitromicina de forma indiscriminada a pacientes.

A urgência se justificava, segundo as mensagens, porque o então ministro da Saúde, general da ativa Eduardo Pazuello, faria o lançamento da ferramenta –o TrateCOV– presencialmente em Manaus, três dias depois.

Os emails foram reproduzidos pela Polícia Federal em inquérito sigiloso que investiga supostos crimes de Pazuello por ter se omitido na crise do oxigênio no Amazonas, em janeiro.

O inquérito foi aberto por determinação do STF (Supremo Tribunal Federal), em atendimento a pedido da PGR (Procuradoria-Geral da República). Demitido do ministério em março, Pazuello perdeu o foro privilegiado, e as investigações foram transferidas para o âmbito da Justiça Federal no DF.

A Folha revelou na terça (8) que o inquérito reuniu novos ofícios, assinados pelo governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), com alertas de escassez de oxigênio e pedidos urgentes de ajuda, não atendidos a contento. Os ofícios são de 9 de janeiro, cinco dias antes do colapso. Foram enviados a Pazuello e ao comandante do Exército na Amazônia, general Theophilo Oliveira.

A PF investiga no inquérito, além das suspeitas de crime na omissão com o oxigênio, o desenvolvimento de uma plataforma eletrônica para ofertar indiscriminadamente cloroquina e outras drogas sem eficácia para Covid-19.

Para isso, policiais colheram depoimentos e reuniram provas sobre como o TrateCOV foi desenvolvido a tempo de ser apresentado em Manaus, três dias antes do colapso de oxigênio.

Emails trocados entre servidores mostram a urgência com que o caso foi tratado no Ministério da Saúde.

Às 17h10 de 8 de janeiro, um servidor pediu a um coordenador do Datasus (Departamento de Informática do SUS) a criação de uma URL (um endereço na internet) para o TrateCOV, a partir do redirecionamento de uma URL já existente.

No email enviado, o funcionário explicou que a criação do endereço na internet seria necessária “para o ‘survey’ que será lançado na segunda em Manaus pelo ministro”. Por isso, o serviço deveria ser feito com urgência.

Às 19h17 do mesmo dia, pouco mais de duas horas depois, um novo email informou que a URL estava pronta e funcionando.

Na segunda-feira mencionada na mensagem anterior, dia 11, o aplicativo foi apresentado em Manaus, conforme depoimentos à PF.

Estavam na capital do Amazonas o então ministro da Saúde e seus secretários diretos, entre eles Mayra Pinheiro, apelidada de “capitã cloroquina”.

Na secretaria de Pinheiro –Gestão do Trabalho e Educação na Saúde– que o TrateCOV foi desenvolvido. Ela foi a Manaus poucos dias antes do colapso de oxigênio nos hospitais para cobrar o uso de cloroquina em pacientes em unidades de saúde.

A secretária, que permanece no ministério, foi ouvida pela PF no inquérito que investiga supostos crimes na crise do oxigênio. Ela confirmou que o aplicativo foi apresentado em Manaus. A plataforma foi colocada à disposição de médicos na cidade, segundo ela.

Reportagens jornalísticas revelaram em seguida que o aplicativo não fazia distinção entre os pacientes e seus respectivos quadros clínicos: sempre ofertava combos de cloroquina, azitromicina e ivermectina, medicamentos recomendados pelo Ministério da Saúde para Covid-19, apesar de não existir eficácia deles no combate à doença.

À PF Pinheiro disse ter constatado uma falha de segurança, o que teria gerado “vulnerabilidade e acesso indevido por hacker na plataforma”. “O hacker conseguiu utilizar a plataforma de forma indevida”, afirmou a secretária, que prossegue no cargo na gestão do ministro Marcelo Queiroga.

O aplicativo foi retirado do ar e um boletim de ocorrência foi registrado na polícia no DF. O mesmo argumento foi apresentado por Pazuello, em depoimento na CPI da Covid no Senado.

Na CPI, porém, a “capitã cloroquina” deu uma versão distinta da que apresentou à PF. Pinheiro afirmou não ter existido o ataque de um hacker.

Sobre o que encontrou em Manaus, a secretária fez a seguinte afirmação à PF: “Chamou a atenção a falta de higienização e de adesão aos cuidados necessários por boa parte da população”.

O TrateCOV, segundo ela, deveria ser de uso restrito por médicos. “O Ministério da Saúde só orienta doses seguras [das drogas sem eficácia para Covid-19]. Os médicos têm autonomia”, afirmou.

A PF cobrou documentos sobre eventual apuração interna a respeito da elaboração do aplicativo. Pediu também o registro do boletim de ocorrência na polícia.

Antes de serem fornecidos aos investigadores, os documentos passaram pelas mãos do advogado Zoser Hardman de Araújo, assessor especial de Pazuello. O assessor encaminhou o material à chefia de gabinete, que o remeteu à PF, praticamente no mesmo momento em que o general foi demitido do cargo.

Além da PF e da CPI da Covid no Senado, a criação e disponibilização do aplicativo TrateCOV são investigados pelo MPF (Ministério Público Federal) e pelo TCU (Tribunal de Contas da União).

O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem da Folha.


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