Brasil
Projeto de Lei brasileiro das fake news é arbitrário e amplo demais, diz relatório da ONU e OEA
Nem tudo foram críticas. Os relatores especiais valorizaram o fato de a lei exigir transparência das plataformas com relação à publicidade, incluindo “publicidade ou conteúdo eleitoral que mencione um candidato, coalizão ou partido”.
Parte do projeto de lei 2630/20, ou “PL das Fake News”, foi considerado arbitrário, amplo demais e uma ameaça ao livre acesso à internet em um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados Americanos (CIDH). As informações são do Tilt, canal sobre tecnologia do UOL.
Assinado pelos relatores especiais de liberdade de expressão da ONU, David Kaye, e da CIDH, Edison Lanza, o documento de dez páginas critica vários pontos do PL, aprovado no Senado no final de junho e que está em discussão na Câmara. Kaye e Lanza enviaram sua análise para o presidente Jair Bolsonaro.
Para os dois, diversos pontos “problemáticos” do PL entram em conflito com o Pacto Internacional dos Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário desde 1992.
A primeira fragilidade do PL, na visão de Kaye e Lanza, é o “escopo amplo e geral” da proposta de regular redes sociaise serviços de mensageria privada —como o WhatsApp— com mais de dois milhões de usuários —aplicativos com menos que isso estariam fora do escopo da lei.
O relatório aponta que do jeito que está, o texto do PL “pode levar a limitações arbitrárias, por parte das autoridades, no desenvolvimento e disponibilidade” destas plataformas. Além disso, essa regulamentação pode criar restrições, também arbitrárias, na oferta de plataformas que atuam no exterior, “contrariamente à presunção de que a liberdade de expressão e informação se aplique sem distinção de fronteiras”.
Os relatores especiais vêm problemas na linguagem ambígua do PL no trecho sobre contas automatizadas nas redes sociais, ou “robôs”. O texto atual obriga essas contas a serem identificadas como tal. Isso poderia suprimir seu uso mesmo em casos de robôs “do bem”, isto é, que distribuem informação de interesse público. O @fatimabot do Twitter é um exemplo de conta automatizada que na verdade faz o inverso das fake news: responde usuários que compartilham boatos com notícias verdadeiras e devidamente checadas.
Kaye e Lanza ainda argumentam que “a publicação e distribuição de conteúdo em redes sociais usando ferramentas de automação constitui um exercício legítimo do direito de liberdade de expressão dos usuários”.
O ponto dos relatores é que, caso estas ferramentas interfiram em direitos ou divulguem temas não protegidos pela liberdade de expressão, como pornografia infantil e incitação de ódio religioso ou racial, a restrição se mostraria válida. Mas o projeto de lei não toca nessa distinção de comportamento.
Identificação e restrição de uso
Outro ponto destacado é a identificação dos usuários, pelas plataformas, com uso de documentos como CPF ou RG. No Senado, o PL chegou a obrigar a cessão destes dados para o uso das redes sociais, mas essa obrigação caiu no texto final aprovado. Mas, houve uma modificação para permitir que as empresas exijam a identidade dos donos de contas nos seguintes casos: Denúncias por desrespeito da possível lei; Indícios de contas automatizadas não identificadas como tal; Indícios de contas falsas ou nos casos de ordem judicial.
Em outro artigo, a proposta exige que as plataformas suspendam usuários que tiverem suas contas telefônicas desabilitadas pelas operadoras de telefonia
Ambos os pontos também são vistos com maus olhos pela dupla de relatores. Segundo eles, a ausência de uma conta telefônica própria ou de um documento de identidade válido “é uma realidade que afeta milhões de pessoas de grupos em situação vulnerável no Brasil e em outros países do mundo”.
Consideram ainda que as medidas abalam direitos como a liberdade de expressão e acesso à informação, além de “afetar o exercício de outros direitos fundamentais, como o direito à educação, saúde, assim como o acesso a bens e serviços online”. Anonimato Outra potencial violação que o PL pode causar é o direito ao anonimato, que para eles tem seu papel dentro do debate público e “pode evitar represálias injustas”. A questão de atrelar uma documentação ao usuário de redes sociais pode justamente comprometer esse direito, segundo Kaye e Lanza.
Os dois ressaltam que o anonimato não significa “uma salvaguarda para qualquer tipo de informação” e que o discurso anônimo destinado a cometer crimes não é protegido pelo direito à liberdade de expressão.
Armazenamento de dados de mensagens
O PL determina que empresas armazenem por três meses os registros de mensagens encaminhadas em massa. Além disso, se for preciso (como em uma decisão judicial), elas terão que indicar os usuários que realizaram os encaminhamentos em massa com data e horário, e o número total de usuários que receberam esse conteúdo.
Os relatores especiais concordam que o armazenamento dos dados de mensagens é um dos detalhes mais controversos do PL, por apresentar riscos à privacidade e, novamente, à liberdade de expressão. Na visão deles, esse ponto do PL poderia: Resultar em monitoramento de jornalistas, pesquisadores, líderes políticos e sociais que fazem uso legítimo desses recursos; Representar uma potencial ameaça à livre circulação de ideias de interesse público na internet; Incentivar o enfraquecimento da criptografia de ponta a ponta, que permite conversas privadas e seguras em serviços como o WhatsApp.
Remoção de conteúdo
Um ponto controverso desde o começo da trajetória do PL foi obrigar plataformas e redes sociais a remover conteúdo falso — ponto que foi amenizado ainda no Senado.
Mas como está hoje, o PL ainda tem medidas nesse sentido. A plataforma poderá excluir conteúdos sem notificar o usuário em casos de riscos de: Dano imediato de difícil reparação; Segurança da informação ou do usuário; Grave comprometimento da usabilidade da aplicação; Incitação à violência; Indução ao suicídio; Indução à pedofilia; Deepfake.
Lanza e Kaye elogiam a introdução de garantias de devido processo, mas apontam que a obrigação de remover conteúdo é um retrocesso em relação ao Marco Civil da Internet. “Internet é um mundo maior, mais pluralista e diverso do que as grandes plataformas intermediárias”, argumentaram, em uma defesa do papel destas plataformas em não serem legalmente responsáveis pelo conteúdo de terceiros.
A exceção, na opinião dos relatores, é se elas “intervierem no conteúdo ou se recusem a acatar uma ordem emitida de acordo com garantias de devido processo por um órgão supervisor independente, imparcial e autorizado a ordenar a remoção de tal conteúdo”.
Teve elogio?
Nem tudo foram críticas. Os relatores especiais valorizaram o fato de a lei exigir transparência das plataformas com relação à publicidade, incluindo “publicidade ou conteúdo eleitoral que mencione um candidato, coalizão ou partido”. Ao final, Lanza e Kaye pedem que o Planalto revise o PL para garantir que ele está de acordo com as legislações internacionais de direitos humanos mencionadas no documento, como as resoluções 34/18 do Conselho de Direitos Humanos e o artigo 41 do Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
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