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Morre Henry Kissinger, estrategista americano conhecido por apoiar ditaduras sul-americanas

Considerado um dos grandes estrategistas da política externa dos Estados Unidos, Kissinger manteve sua influência por décadas depois da saída de posições no governo.

Henry Kissinger morreu nesta quarta-feira, aos 100 anos. (Foto:Reprodução)

Conselheiro de Segurança Nacional e secretário de Estado dos presidentes republicanos Richard Nixon e Gerald Ford, adepto de uma realpolitik que levou tanto ao reatamento entre os Estados Unidos e a China quanto ao apoio ativo de Washington às ditaduras sul-americanas dos anos 1960 e 1970, Henry Kissinger morreu nesta quarta-feira, aos 100 anos.

Considerado um dos grandes estrategistas da política externa dos Estados Unidos — embora seus críticos intelectuais e políticos afirmem que sua estatura foi sobrevalorizada — Kissinger manteve sua influência por décadas depois da saída de posições no governo. Com o Brasil da ditadura militar, ele acalentou o projeto de estabelecer uma aliança especial, interrompido com a eleição em 1976 do democrata Jimmy Carter. Mesmo antes disso, como conta o estudioso Matias Spektor no livro “Kissinger e o Brasil”, o projeto foi marcado por incompreensões mútuas, incluindo em relação à política de “pragmatismo responsável” do então chanceler brasileiro Antonio Azeredo da Silveira, que defendia que o Brasil diversificasse suas relações exteriores.

Escritor prolífico, com 12 livros publicados, incluindo o enciclopédico “Diplomacia”, o refugiado judeu que fugiu com a família da Alemanha nazista no final dos anos 1930 teve sua biografia de homem público marcada pela Guerra do Vietnã e o golpe que derrubou o governo de Salvador Allende no Chile em 1973, um objetivo perseguido por ele e Nixon desde a eleição do socialista, em 1970.

No mesmo ano de 1973, Kissinger recebeu o Nobel da Paz pelo acordo de cessar-fogo entre as forças americanas, o então Vietnã do Norte e a guerrilha comunista-nacionalista apoiada por Hanói que combatia o governo pró-americano do Sul do país do Sudeste Asiático. Embora o acordo tenha aberto caminho para o fim do sangrento envolvimento dos Estados Unidos no conflito, o prêmio levou à renúncia de dois integrantes do Comitê do Nobel. A distinção causou controvérsia por causa dos crimes de guerra cometidos pelos militares dos EUA e pelo fato de Kissinger, ao lado de Nixon, ter intensificado os bombardeios secretos do vizinho Camboja, usado como rota dos guerrilheiros e soldados do Norte vietnamita.

Kissinger definia a realpolitik como a política externa baseada nas relações de poder e do interesse nacional. Nesse sentido, se opunha à chamada corrente idealista da política externa americana, que reivindica uma diplomacia moral, baseada em valores como democracia e direitos humanos — mas que na prática enfrenta acusações de hipocrisia ao usar esses valores como argumento para políticas e ações intervencionistas.

Nos anos mais recentes, à frente de sua empresa de consultoria, a Kissinger Associados, o ex-secretário de Estado apoiou a chamada “guerra ao terror” de George W. Bush e a invasão do Iraque, mas depois disse ter se equivocado. Alegou que os assessores de Bush acreditavam sinceramente que Saddam Hussein tinha armas atômicas, e que teria se oposto se soubesse que a derrubada do ditador seria seguida por uma ocupação de longo prazo do país árabe. A convite de Bush filho, ele chegou a presidir a comissão criada para investigar os atentados do 11 de Setembro, mas renunciou semanas depois alegando conflito de interesses.

Kissinger, no entanto, se opôs à política de Donald Trump de acirramento da rivalidade com a China, afirmando que ela intensificava o risco de uma guerra quente que teria consequências devastadoras para os dois países e o mundo.

— A menos que haja base para alguma ação cooperativa, o mundo cairá em uma catástrofe comparável à Primeira Guerra Mundial — disse no final de 2020 o autor de “Sobre a China”, livro de 2011 no qual reflete sobre a potência asiática de hoje e rememora suas conversas então secretas com Mao Tsé-Tung e seu primeiro-ministro, Zhou Enlai, que abriram caminho para a visita de Nixon a Pequim, em 1972.

O reatamento oficial entre a China governada pelo Partido Comunista e os Estados Unidos viria com Carter, em 1979, mas foram Nixon e Kissinger que viram nas divergências entre Pequim e Moscou uma oportunidade para abrir uma cunha no bloco socialista, numa época em que a hegemonia de Washington estava enfraquecida pela Guerra do Vietnã, a agitação interna e o fim do ciclo de crescimento econômico do pós-guerra.

Pela mesma razão, o então secretário de Estado buscou uma política de détente, ou distensão, com a União Soviética do então dirigente Leonid Brejnev, que também confrontava a estagnação econômica e enfrentara revoltas nos países do bloco socialista, como a Primavera de Praga na então Tcheco-Eslováquia, em 1968. Rejeitada na época por parte da opinião pública americana, por congelar a divisão do mundo em duas esferas, a détente levou aos primeiros acordos de desarmamento entre as duas potências e aos Acordos de Helsinque, de 1975, que acabaram dando alento aos movimentos de oposição no Leste Europeu por incluírem cláusulas de direitos humanos e civis e respeito à soberania nacional.

Denunciado por defensores dos direitos humanos — o britânico Christopher Hitchens publicou em 2001 o livro “O julgamento de Henry Kissinger” —, o ex-secretário de Estado era cioso da memória de suas ações no governo americano. Em 2010, a organização não governamental National Security Archive teve que recorrer à Justiça para ter acesso a documentos do período da Operação Condor que mostravam que Kissinger mandou suspender esforços do Departamento de Estado para advertir as ditaduras sul-americanas contra assassinatos cometidos por seus agentes no exterior — incluindo o do ex-chanceler de Allende Orlando Letelier, morto em um atentado no coração da capital americana que teve a participação de agentes da CIA. Quando esses documentos vieram à tona, ele disse à Folha de S. Paulo que a acusação era “totalmente falsa”, a despeito do que indicavam os telegramas.

O estrategista escreveu uma autobiografia em três tomos e sempre negou participação no golpe chileno de 1973, embora não o apoio a Pinochet. “Consideramos que a mudança de governo no Chile foi de modo geral favorável — mesmo da perspectiva dos direitos humanos”, escreveu.

Antes de se enveredar na comunidade de política externa americana como professor de Harvard e diretor do seu Departamento de Estudos de Defesa, entre 1958 e 1971, Kissinger lutou na Segunda Guerra Mundial e, após a vitória aliada, serviu como oficial de inteligência na Alemanha.

Muitos livros foram escritos sobre ele, e seus biógrafos relacionam sua admiração pela China e os dirigentes chineses à sua convicção íntima de que a política externa era assunto complexo demais para ser entendido pelo cidadão comum, e devia ser conduzida por uma elite ilustrada — embora ele próprio não hesitasse em armar circos para as massas, como quando, ao mesmo tempo em que tinha a convicção de que o melhor para os Estados Unidos era sair do Vietnã, ordenou bombardeios letais do Norte do país, para evitar a impressão, afinal inevitável, de que se tratava de uma derrota.

Numa célebre entrevista à jornalista italiana Oriana Fallaci, em 1972, Kissinger disse que seu prestígio se devia ao fato de sempre agir sozinho.

— Os americanos adoram isso. Os americanos gostam do cowboy que puxa a caravana para a frente cavalgando sozinho o seu cavalo.


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