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Brasil

Escavação no DOI-Codi, em SP, acha inscrições na parede, objetos antigos e vestígios de sangue

O material foi encontrado durante escavação organizada por profissionais dos laboratórios de arqueologia de universidades de São Paulo, Campinas e Minas Gerais.

Arqueólogos e historiadores pesquisam e escavam o local onde funcionava o DOI-CODI da Rua Tutóia, em São Paulo. (Foto: Rubens Cavallari/Folhapress)

Inscrição na parede, material biológico que pode ser sangue e outros vestígios encontrados por um grupo de pesquisadores durante escavação que ocorreu até este sábado (12) no DOI-Codi de São Paulo podem ser usados como provas em processos judiciais e ajudar a sustentar uma ação pedindo que o antigo centro de repressão se torne um memorial.

O material foi encontrado durante escavação organizada por profissionais dos laboratórios de arqueologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que estiveram no local desde o início de agosto para fazer a pesquisa.

O DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) foi o principal centro de repressão do Brasil durante a ditadura militar (1964-1985). A estimativa é que cerca de 7.000 pessoas ficaram presas no local entre 1969 e 1983 e que as mortes a cargo de agentes do órgão tenham sido entre 52 e 79.

Segundo Deborah Neves, pós-doutoranda em história pela Unifesp e coordenadora do projeto, a escavação faz parte de uma ação inédita no país no contexto de investigação de centros de repressão.

“É a primeira vez que trabalhamos ao mesmo tempo com três linhas da arqueologia: a das escavações, a forense —que permite que o investigador busque informações que podem ser usadas judicialmente— e a pública, voltada para a divulgação do trabalho”, afirma.

O trabalho em três frentes ajuda na obtenção de vestígios materiais que podem ser usados em processos judiciais, além de fortalecer o debate sobre a importância da memória para a reflexão acerca de contextos relacionados a passados violentos.

Além de inscrições na parede e material biológico que os primeiros testes apontam ser sangue, foram encontrados objetos como solas de sapato, botões, vidros de colônia e papéis de bala.

Um frasco de tinta para carimbo é outro exemplo de vestígio encontrado nas escavações. Segundo os pesquisadores, o objeto corrobora o relato de presos políticos que afirmam terem sido fichados na frente do prédio, onde ocorriam interrogatórios e torturas.

“Os objetos encontrados são materiais da cotidianidade que causam efeitos emocionais e de reflexão únicos”, afirma Andres Zarankin, professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG que conduz as escavações.

Com experiência em centros de detenção no Brasil e na Argentina, Zarankin conduziu em 2020 escavação no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de Belo Horizonte que revelou a inscrição de músicas e poesias nas paredes do órgão repressivo. “São como palavras diretas entre a gente e as pessoas que estavam detidas ali”, afirma.

No Club Atlético, centro de detenção de Buenos Aires, na Argentina, Zarankin e sua equipe escavaram uma bolinha de pingue-pongue que se mostrou objeto revelador do cotidiano dos repressores daquele país durante a ditadura (1976-1983).

“Sobreviventes nos contaram que havia uma mesa de pingue-pongue na qual os repressores jogavam enquanto os presos eram torturados”, conta Zarankin. “Os presos estavam encapuzados, mas ouviam a bolinha indo e voltando. Ela se transformou na representação material da experiência de estar naquele local”.

No caso do DOI-Codi de São Paulo, o frasco de tinta e outros objetos são vestígios que podem ajudar a explicar a dinâmica que ocorria no centro de detenção.

O prédio escavado tem dois andares, nos quais os pesquisadores abriram cinco quadras, espaços em que fizeram a busca por vestígios. O edifício tem um banheiro em cada andar. No térreo, há três salas e um refeitório. O primeiro andar tem quatro salas menores e uma maior. O segundo tem, além do salão, três salas pequenas.

Célia da Rocha Paes, 79, retornou pela primeira vez no sábado (5) ao prédio em que ficou presa em 1970, por uma quantidade de dias que ela não consegue precisar. “Sei que cheguei em dezembro no DOI-Codi. Acho que passei o Ano Novo no Dops”, afirma.

O tempo exato em que esteve presa não é o único registro do qual Célia não consegue recordar. “Não me lembro se comi, se fui ao banheiro ou outras coisas práticas. Só me lembro de ter sido presa, do interrogatório e dos lances de escada que subia para ser interrogada”, afirma.

Sua memória mais nítida é a da preocupação com o então companheiro, Manuel Cação, que também esteve preso no DOI-Codi. Como ele era epilético, Célia temia que tivesse crises durante as sessões de tortura.

Segundo ela, a razão alegada para a sua prisão foi sua ligação com Rodrigo Lefèvre, arquiteto e professor universitário que fez oposição à ditadura. Sobre o passado, quer agradecer aos amigos que a deram suporte material e afetivo, mesmo se arriscando durante o período de repressão.

“Ao escavarem e evidenciarem o que aconteceu ali [DOI-Codi], podemos conseguir nos lembrar de coisas. Os vestígios físicos podem ajudar a ativar a nossa memória”, afirma.

Uma das expectativas dos pesquisadores é a de que o material encontrado nas escavações possa fortalecer o pedido a favor da transformação do local em um memorial. Atualmente, um dos quatro prédios que formam o complexo serve de endereço para o 36º Distrito Policial de São Paulo.

Em junho de 2021, o MP-SP (Ministério Público de São Paulo) entrou com uma ação judicial para implementar no local um memorial dedicado à reflexão sobre a ditadura.

A ação, entre o MP-SP e a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, ainda está em andamento.

“Transformar em memorial é importante porque museus nos ajudam a entender não só o passado, mas também o presente”, afirma Janice Theodoro da Silva, 75.

Ela esteve presa no DOI-Codi em 1971 por ter ligação com o POC (Partido Operário Comunista).

“O que é encontrado nos ajuda a refletir a partir de fragmentos de memória, que podem ser fragmentos materiais, como os tacos no chão, uma máquina de escrever, uma maquininha de choque ou depoimentos orais”, afirma.

“Mesmo as pessoas próximas a mim não se dão conta da importância de se reconstituir o passado”, completa Célia Paes. “Falam como se nós estivéssemos remoendo o passado, e nós não estamos. Estamos mostrando que isso aconteceu e que a gente tem que tomar providências para que não volte a acontecer”.

Além das escavações, sondagens e raspagens de paredes que ocorreram até este sábado, o projeto ofereceu oficinas, visitas guiadas e formação de voluntários e professores. Nesta segunda (14), interessados ainda podem fazer visitas das 10h às 11h e das 15h às 16h.

Para participar, basta comparecer ao local, na rua Tutóia, 921, na Vila Mariana, ou solicitar agendamento na conta do Instragram @arqueodoicodisp.

Segundo a pesquisadora da Unicamp Aline Vieira de Carvalho, a expectativa é que o projeto tenha continuidade, com nova etapa de escavações.


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